Marjorie Marona

Professora de Ciência Política da UNIRIO e pesquisadora do QualiGov - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável.

Opinião

assine e leia

República das togas

A expansão do poder judicial cria obstáculos ao presidencialismo de coalizão e representa um desafio adicional para a governabilidade

República das togas
República das togas
O presidente Lula (PT). Foto: Jim Watson/AFP
Apoie Siga-nos no

Até bem recentemente, a quase unanimidade dos analistas políticos brasileiros recorreria, sem pestanejar, ao presidencialismo de coalizão como artefato explicativo um tanto versátil do funcionamento do sistema político. A ideia de que a governabilidade depende da capacidade do presidente de construir coalizões multipartidárias como base de apoio no Congresso forjou um modelo analítico vigoroso, inobstante desafiado, desde o princípio, pela expansão do poder judicial. Aliás, depois de Bolsonaro, a relação entre os poderes Executivo e Legislativo, de um lado, com o Supremo, de outro, poderia bem ser caracterizada como uma espécie de Síndrome de Estocolmo – aquela em que as vítimas de sequestro desenvolvem sentimentos de simpatia, empatia ou até lealdade em relação aos sequestradores.

Não surpreende, portanto, que o STF venha sofrendo pressões tanto do governo quanto do Congresso. De um lado, Lula parece ter adotado uma abordagem inovadora em face do processo de indicação para a Corte – e outros cargos da cúpula do sistema de justiça e da alta burocracia jurídica do Estado, no STJ, TSE, PGR e AGU, por exemplo. Desde a controversa nomeação do ministro Cristiano Zanin para a Suprema Corte, Lula dá sinais de promover uma articulação conjunta das indicações que suas prerrogativas lhe facultam, talvez como estratégia para aumentar sua influência sobre o Supremo e adjacências judiciais, contornando os custos políticos com sua base social de apoio, que reclama uma postura enérgica em face das assimetrias de gênero e raça no Poder Judiciário.

Nesse espírito, Lula teria deixado para conferir a Edilene Lobo o posto de primeira ministra negra da história do TSE apenas depois que o clamor por representatividade no Judiciário já se tornara ensurdecedor; e não sem antes ter acomodado as preferências dos próprios ministros do STF. Para o STJ, o presidente preferiu indicar separadamente a advogada Daniela Teixeira, recolhendo pontualmente os ativos de sua escolha, para, então, nomear dois outros homens para as vagas restantes. Finalmente, especula-se que Lula venha buscando o nome de uma jurista mulher que empreste legitimidade à jogada que envolve o movimento de peças no Ministério da Justiça e na AGU para o preenchimento da vaga no STF, aberta pela aposentadoria da ministra Rosa Weber. Quanto à PGR, em que se registra escassez de candidatas mulheres, dados os critérios de elegibilidade, Lula vem adiando a indicação de um substituto para Aras, estendendo o mandato de Elizeta Ramos indefinidamente – na prática tornando-o ad nutum.

Desde outro front a Câmara requenta propostas de reforma que visam enquadrar o Supremo, assumindo a clássica tática de retaliação que consiste na propositura, e eventual aprovação, de emendas constitucionais sobre temas já decididos pela Corte, que alteram o modelo de nomeação dos ministros, estabelecem mandatos ou fixam critérios que modifiquem seu perfil. Outros projetos de reforma ainda miram alterações de regras processuais, reduzindo o poder dos ministros individual ou coletivamente: é o caso daqueles que buscam limitação para decisões monocráticas ou preveem a possibilidade de derrubada das decisões do STF pelo Congresso.

Reagindo, o ministro Luís Roberto Barroso convocou uma entrevista coletiva em que saiu em defesa do STF, relembrando a higidez e eficiência da Corte diante das ameaças à democracia. De resto, o ministro parece ignorar as bandeiras agitadas tanto pelo governo quanto pelo Legislativo que, dissemelhantes em forma e conteúdo, se agitam sob os mesmos ventos do desejo de contenção dos ímpetos expansionistas do poder judicial. Prova disso é o resgate do julgamento da ação em que a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema prisional havia sido reconhecida.

A inquestionável violação massiva, sistemática e generalizada de direitos fundamentais, decorrente da situação das penitenciárias no Brasil, não afasta todas as críticas sobre os fundamentos civilizatórios da atuação do Supremo, tal qual defendido por Barroso e reafirmado pela oportunidade que o julgamento oferece para que a Corte promova intervenção deveras ativa na conformação das políticas públicas. De fato, o STF não pode ser refém das disputas políticas para se desincumbir de seu quinhão na construção de um país mais justo e democrático. Não pode, porém, lançar mão da retórica da razão iluminista de um tribunal crente na sua missão de empurrar a história à revelia do senso comum ­majoritário. A tradução institucional dessa batalha certamente transborda o modelo da coalizão. Mais não se sabe. •

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘República das togas’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo