Política
Antígona gaúcha
O CNJ analisa atuação de juiz que conduziu júri anulado, enquanto os culpados pela tragédia seguem impunes


Passados mais de dez anos, os familiares dos 242 mortos e 636 feridos no incêndio da Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, estão fartos de esperar por justiça. Em 2021, os proprietários da casa noturna, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, assim como o músico e o auxiliar que tiveram a irresponsável e desastrosa ideia de usar artefatos pirotécnicos em um show em ambiente fechado, foram condenados a cumprir penas entre 18 e 22 anos de prisão. Mas o alívio pela punição dos responsáveis pela tragédia durou pouco. Em agosto do ano seguinte, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu anular o resultado do julgamento – decisão confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça no início deste mês.
Os desembargadores do TJ apontaram vícios insanáveis na condução do julgamento. Responsável pela instrução do processo na primeira instância, o juiz Orlando Faccini Neto reuniu-se em particular com os jurados, sem a presença de representantes do Ministério Público ou da defesa. O magistrado também foi censurado por ter questionado os jurados sobre questões que não constam no processo. No mesmo dia em que o júri foi anulado, o TJ gaúcho expediu um mandado de soltura e todos os réus foram libertados – para espanto das vítimas e familiares, inconformados com as idas e vindas processuais.
Na terça-feira 26, foi a vez de Faccini Neto ocupar o “banco dos réus”. Em uma sessão do Conselho Nacional de Justiça destinada a avaliar a sua conduta, o relator Luiz Felipe Salomão votou pela abertura de um Processo Administrativo Disciplinar para apurar possíveis desvios do magistrado. Defensor dos acusados pela tragédia da Kiss, o advogado Jader Marques também acusa Faccini Neto de ter antecipado o juízo em manifestações à mídia e nas redes sociais. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do conselheiro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho.
O novo julgamento será em fevereiro de 2024, 11 anos após o incêndio que matou 242 jovens
O novo júri dos quatro réus da Boate Kiss será realizado em 26 de fevereiro de 2024, passados mais de 11 anos do incêndio. O advogado Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Unisinos e pós-doutor pela Universidade de Lisboa, reconhece que o primeiro julgamento apresentava vícios, mas considera injustificável a demora do Judiciário brasileiro, um dos mais caros do mundo, para dar uma resposta satisfatória às vítimas e seus familiares. “Sei que a anulação foi dolorosa, mas o STJ assim decidiu. O caso da Boate Kiss deveria servir para que fizéssemos uma reflexão acerca do comportamento do Estado brasileiro”, propõe o jurista. “Desde a aurora da civilização, não se pode negar enterro aos mortos e, no caso da Kiss, há um enterro simbólico negado há mais de dez anos. Além de prolongar o desfecho dessa história, essa demora está sequestrando as almas dos mortos e dos vivos. Na tragédia grega de Sófocles, Antígona morreu enfrentando Creonte, o rei, para ter o direito de enterrar seu irmão.”
De fato, a população de Santa Maria só deseja enterrar seus mortos com a certeza de que os responsáveis pelo incêndio não ficarão impunes. Desde aquela fatídica madrugada de 27 de janeiro de 2013, o matemático Paulo Tadeu Nunes de Carvalho sente-se em dívida com o filho Rafael, que morreu nas chamas aos 32 anos. “Foi uma tragédia anunciada”, lamenta, ao elencar uma série de falhas e omissões decisivas para o desfecho fatal. Em 2009, o arquiteto Rafael Escobar apresentou, a pedido da prefeitura, um relatório no qual indicava 29 irregularidades jamais sanadas na edificação. Mesmo assim, em 2011, o Ministério Público Estadual assinou um Termo de Ajustamento de Conduta que autorizou o funcionamento da casa noturna.
O inquérito da Polícia Civil resultou no indiciamento de 35 pessoas, entre elas o prefeito Cezar Schirmer, secretários municipais, fiscais da prefeitura e integrantes do Corpo de Bombeiros. Apenas quatro foram efetivamente denunciados pelo Ministério Público: os dois sócios da boate, o músico que acendeu o artefato pirotécnico e o produtor da banda Gurizada Fandangueira, que trouxe o material inflamável para animar a noitada. Poupado pela promotoria, o prefeito Schirmer depois foi nomeado secretário de Segurança Pública do governador Ivo Sartori.
Alvo de sindicância. Faccini Neto nega ter influenciado o voto dos jurados em 2021 – Imagem: Itamar Aguiar/GOVRS
O julgamento realizado em Porto Alegre, em 2021, demorou dez dias. Após o júri confirmar a condenação dos réus, familiares das vítimas desataram a chorar, com a sensação de que, finalmente, a Justiça havia atendido suas súplicas. Oito meses depois, tudo voltaria à estaca zero. O juiz Faccini Neto nega qualquer conduta irregular ou imprópria. Ele reconhece ter se encontrado com os jurados, inclusive em almoços “na presença de colegas da Corregedoria de Justiça”, mas garante que jamais tratou de qualquer tema que pudesse influenciar na decisão deles.
Embora a decisão do CNJ não interfira diretamente no processo que se arrasta há dez anos e oito meses, ver o juiz Faccini Neto responder a uma sindicância, enquanto os responsáveis pelo incêndio seguem impunes, reaviva as piores lembranças de quem vivenciou a tragédia. À época com 20 anos, Bharbara Alves Agnoletto recorda-se do momento em que precisou reconhecer o corpo de um amigo, a pedido de sua família. “Nunca vou esquecer o que vi naquele ginásio. O cheiro da fumaça impregnado na carteira e no celular dele. O semblante de pânico das pessoas, o meu próprio desespero.”
O presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Gabriel Rovadoschi Barros, teme que o processo movido no CNJ contra o juiz Faccini Neto possa influir no novo júri. “É uma forma de desmoralizar a conduta do doutor Orlando, a fim de intimidar não só os jurados, mas também o magistrado que vier a assumir o caso.” Em recente entrevista à Rádio Gaúcha, o desembargador Antonio Vinícius Amaro da Silveira, segundo vice-presidente do TJ gaúcho, prometeu redobrar os cuidados para evitar outra anulação do júri. É o mínimo que se espera para aplacar a sede de Justiça das vítimas e familiares. •
Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Antígona gaúcha’
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