Cultura
Cruzada por uma terra inóspita
Realizado na Islândia, Terra de Deus capta modos de existência e pensamento indissociáveis da natureza


Antes de Björk surgir na cena pop, a Islândia era, no nosso imaginário tropical, apenas uma porta de entrada para a Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne. O cinema que tem vindo de lá nos últimos anos, além de revelar um espaço físico incomum, capta modos de existência e pensamento indissociáveis da natureza, característica já presente nos filmes nórdicos do início do século passado.
Terra de Deus, por sorte, estreou em salas (na quinta-feira 28) antes de chegar ao streaming. O longa-metragem dirigido por Hlynur Pálmason é visual e visceral, feito para as condições imersivas do cinema.
O filme parte de restos que o tempo quase apagou. “Uma caixa de madeira foi encontrada na Islândia, com sete fotografias molhadas tiradas por um padre dinamarquês. Essas imagens são as primeiras do litoral sudeste. Este filme é inspirado nessas fotografias”, informa o prólogo.
Lucas é um padre enviado pela Igreja da Dinamarca para fundar uma paróquia numa região afastada, após a erupção do vulcão Askja, em 1875, ter inviabilizado a presença humana no seu entorno.
Lucas usa técnicas rústicas para fotografar os tipos que encontra em sua cruzada. Fotografar é um modo de captar o real. A presença religiosa era uma das formas de manter cativas as almas do território controlado pela Dinamarca desde o século XIV. O padre, contudo, será capturado pelas forças do território e pelo caráter indomável de Ragnar, seu guia e nêmesis.
Terra de Deus poderia limitar-se ao molde da jornada do herói. A Islândia é, porém, diferente de um cenário para turistas da Terra Média. Aqui, o espaço majestoso materializa o poder absoluto que Lucas chama de Deus e com o qual Ragnar dialoga de forma corporal.
A convivência forçada e conflituosa entre os dois não reflete só o aspecto colonial da relação entre dinamarqueses e islandeses. É no domínio da natureza que o embate político e mental ocorre. Diante dela, a postura de Lucas é de superioridade e exploração, enquanto Ragnar busca a adaptação.
O filme tem duas partes. Na primeira, os personagens atravessam o território inóspito. Na segunda, constituem uma comunidade adaptada ao espaço. Em nenhuma delas a fé enfezada de Lucas conduz à paz. Terra de Deus constrói seu encantamento a partir da experiência pagã e material do tempo.
Nas cenas finais, de beleza quase abstrata, assistimos a um longo apagamento. E, então, é como se Terra de Deus não fosse um filme sobre o passado, mas sobre o futuro. •
Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cruzada por uma terra inóspita’
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