Política
A raiz de todos os males
Na Assembleia-Geral da ONU, o presidente Lula aponta o combate à desigualdade como o principal desafio do planeta


O UBS é um tradicional banco suíço acostumado a guardar dinheiro dos milionários. Comprou neste ano um concorrente em crise, o Credit Suisse, e tornou-se o maior gestor de ativos e fortunas do planeta. Essa especialidade lhe permite analisar muitas contas. Ao examinar 5,4 bilhões de patrimônios familiares, o equivalente a dois terços da população mundial, constatou que o 1% aninhado no topo da pirâmide embolsa 44% da riqueza global. Pornográfico, certo? Adivinhe quem é o primeirão da fila da concentração de renda, com gula acima da média, entre as economias examinadas? O Brasil, claro. Nosso 1% controlava 48% da riqueza nacional em 2022, conforme o Global Wealth Report, recém-divulgado pelo banco.
Ao voltar à tribuna da ONU, em Nova York, para abrir pela sétima vez a assembleia-geral anual da entidade, Lula colocou o combate às desigualdades como a grande tarefa da atualidade. Crise climática, sequelas da pandemia de Covid, insegurança alimentar e energética, racismo, intolerância e xenofobia são desafios que “se alastram” no embalo da iniquidade, na visão do presidente. “Se tivéssemos que resumir em uma única palavra esses desafios, ela seria desigualdade. A desigualdade está na raiz desses fenômenos ou atua para agravá-los”, declarou na tribuna das Nações Unidas na terça-feira 19. “Reduzir as desigualdades dentro dos países requer incluir os pobres nos orçamentos nacionais e fazer os ricos pagarem impostos proporcionais aos seus patrimônios.”
Fonte: Global Wealth Report 2023, do Banco UBS
O que teriam pensado os comandantes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, diante dessas palavras? Ambos assistiram ao discurso in loco, como integrantes da comitiva brasileira a convite de Lula. São dois ricaços. Pacheco declarou à Justiça Eleitoral 22 milhões de reais em bens na eleição de 2018. Lira, 5,9 milhões na disputa de 2022. Graças à dupla, o Congresso impôs duas derrotas ao governo neste ano no quesito “tributar quem pode mais”. Perderam validade uma Medida Provisória que alterava regras no Carf, o “tribunal dos impostos”, e outra que cobrava Imposto de Renda dos lucros com offshores (firmas ou fundos no exterior). Essas propostas ressuscitaram em forma de Projetos de Lei. O PL do Carf foi aprovado em agosto em definitivo pelo Congresso. O das offshores está parado, assim como uma MP para tributar os lucros dos chamados fundos exclusivos. Esses e as offshores pertencem a cerca de 62 mil titulares, cada um com patrimônio médio de 24 milhões de reais, conforme dados do Ministério da Fazenda.
Formado por endinheirados e simpatizantes, o Congresso é cercado pela maior população de rua do País, em termos proporcionais. Dono da maior renda per capita estadual (2,6 mil reais mensais), o Distrito Federal tem 7.924 pessoas nas ruas, 0,28% de seus habitantes, conforme o Ministério dos Direitos Humanos. O batalhão nas ruas brasileiras é de 236 mil, tamanho da segunda maior cidade alagoana, Arapiraca. Cidadãos também sem comida, presume-se. “A fome, tema central da minha fala neste Parlamento mundial 20 anos atrás, atinge hoje 735 milhões de seres humanos, que vão dormir esta noite sem saber se terão o que comer amanhã”, afirmou Lula nas Nações Unidas, em alusão à sua estreia naquele púlpito em 2003. Por tradição, cabe ao Brasil abrir a assembleia-geral, não importa o mandatário. Até Jair Bolsonaro ocupou o palanque, para constrangimento geral da nação.
Fonte: Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2019
O número de famélicos citado por Lula consta de um documento de julho da ONU. É como se todos os moradores dos 50 países europeus passassem fome. Combatê-la será uma das bandeiras do Brasil nos 12 meses no comando rotativo do G-20, grupo das maiores economias. O petista pretende propor no bloco uma força-tarefa contra a fome e outra contra o aquecimento global. “Ao assumir a presidência do G-20 em dezembro próximo, não mediremos esforços para colocar no centro da agenda internacional o combate às desigualdades em todas as suas dimensões”, disse na ONU. Disparidades de gênero e de raça também, não apenas de renda.
Em 2015, o mundo assumiu, no âmbito das Nações Unidas, 17 compromissos para atingir até 2030 que significariam a melhora das condições de vida dos seres humanos e a preservação ambiental. O Brasil adotará por conta própria um 18º compromisso: igualdade racial. E como estão os 17 existentes? Na segunda-feira 25, o Palácio do Planalto verá uma apresentação do Relatório Luz Sobre a Agenda 2030 no Brasil e o documento diz, por exemplo, que “as desigualdades socioeconômicas no Brasil se ampliaram exponencialmente sob o governo Bolsonaro”.
Na porta de casa. Brasília, com a maior renda per capita do País, tem 7,9 mil moradores de rua – Imagem: José Cruz/ABR
De volta ao G-20. O bastão simbólico foi passado ao Brasil em setembro, no encontro anual do grupo realizado na Índia. O próximo será em novembro de 2024, no Rio de Janeiro. A primeira reunião aconteceu em 2008, em meio à crise financeira surgida no Hemisfério Norte. Lula estava em seu segundo mandato à época. Na Índia, o petista ressaltou a importância do bloco naquele momento, mas ressalvou: “Foi insuficiente para corrigir os equívocos estruturais do neoliberalismo”. Neoliberalismo mencionado por ele na ONU como culpado por piorar “a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias”. Sobre os “escombros” do neoliberalismo, teorizou ele, despontou a extrema-direita.
Para um diplomata com experiência nas Nações Unidas, o discurso de 22 minutos de Lula foi audacioso. O presidente, diz, fez críticas ao status quo global e expôs os dilemas do capitalismo, mas sem errar a mão, vide os sete aplausos da plateia e a repercussão positiva na mídia. Tudo isso com um pano de fundo geopolítico mais complexo do que em 2003 – do qual a guerra na Ucrânia é o melhor exemplo. Às margens da ONU, Lula reuniu-se na quarta-feira 20 pela primeira vez com o ucraniano Volodymyr Zelensky e insistiu no diálogo com a Rússia. A guerra foi citada pelo brasileiro na assembleia-geral como um fracasso da ONU. Há, porém, quem lucre. No ano passado, o gasto militar mundial bateu recorde, conforme uma entidade pacifista sueca, a Sipri: 2,2 trilhões de dólares, equivalente a um ano de funcionamento da economia italiana. A guerra na Ucrânia começou em fevereiro de 2022.
Vistas em conjunto, as passagens pelo G-20 e pela ONU, entremeadas por uma viagem a Cuba, mostraram um Lula disposto a liderar o Sul global contra a ordem econômica imposta pelas nações ricas do Norte após a Segunda Guerra Mundial. A passagem por Cuba justificou-se pela participação na reunião do G-77, grupo fundado nos anos 1960 justamente para ser porta-voz dos emergentes. O encontro terminou com uma declaração que condena a “atual ordem econômica internacional injusta para os países em desenvolvimento”. No discurso em Havana, Lula bateu nessa tecla. O G-77, disse, foi fundamental para “defender a construção de uma nova ordem econômica internacional”, mas “muitas das nossas demandas nunca foram atendidas”. A ONU, o sistema Bretton Woods e a OMC, prosseguiu, perderam credibilidade.
Sobre os escombros do neoliberalismo aflorou o extremismo de direita, lembrou Lula
Bretton Woods é a cidade norte-americana palco, em 1944, de uma conferência internacional que levou à criação do FMI e do Banco Mundial, pilares da arquitetura financeira global vigente. Ao participar de um debate sobre a revisão dessa arquitetura, organizado em junho, em Paris, pelo presidente francês, Emannuel Macron, Lula defendeu o fim do domínio do fundo e do banco pelos países do Norte. “É preciso ter novas direções, mais gente participando da direção, porque não podem ser os mesmos de 1945.” Uma consequência desse domínio: em 2021, o FMI colocou 160 bilhões de dólares à disposição dos países europeus para reforçar suas reservas internacionais. Aos africanos, separou meros 24 bilhões. A propósito, ao passar por Angola em agosto, Lula relançou a ideia do perdão da dívida dos africanos. “É preciso começar uma nova briga, que é a seguinte: o continente africano deve para o FMI por volta de 760 bilhões de dólares. Essa dívida vai ficando impagável, porque o dinheiro do orçamento nunca dá.”
A independência de Angola em relação a Portugal e a ascensão de um governo socialista em 1975 tiveram apoio de tropas de Cuba. Na recente reunião na ilha caribenha, em 16 de setembro, Lula defendeu o fim do embargo econômico imposto pelos Estados Unidos após a revolução cubana de 1959. Uma posição repetida depois na ONU. Nos dois discursos, o brasileiro também criticou a inclusão de Cuba em uma lista norte-americana de países patrocinadores de terrorismo. A ilha havia saído da lista em 2015, tempos de Barack Obama, mas voltou em 2021, dias antes da troca de Donald Trump por Joe Biden na Casa Branca.
Bandeira. Lula e Biden unem-se no combate à precarização do trabalho – Imagem: Casa Branca Oficial/EUA
Lula e Biden tiveram um encontro em paralelo, na quarta-feira 20. Foi o segundo desde a volta do brasileiro ao poder. O outro ocorrera em fevereiro, na Casa Branca. De lá para cá, a proximidade de Lula com a China e os BRICS e suas posições a respeito da guerra na Ucrânia (ele culpa o Ocidente por respaldar Zelensky) haviam deixado a impressão de falta de sintonia com Biden. O embate com a extrema-direita na política interna os aproxima, idem a defesa internacional do meio ambiente. Agora, há outro tema a juntá-los: o mundo do trabalho. Lula e Biden decidiram tremular juntos a bandeira dos direitos trabalhistas e dos sindicatos. “Não queremos que só uma classe se saia bem. Queremos que os pobres tenham oportunidades de subir na vida, e essa visão é impulsionada por uma força trabalhista forte. É por isso que meu governo tem sido chamado de o governo mais pró-sindicatos da história dos Estados Unidos”, afirmou Biden.
Lula cumprirá, aqui, a promessa de campanha e vai rever a reforma trabalhista de Michel Temer? “O desemprego e a precarização do trabalho minaram a confiança das pessoas em tempos melhores, em especial os jovens. Os governos precisam romper com a dissonância cada vez maior entre a voz dos mercados e a voz das ruas”, disparou na assembleia-geral. Dissonância vista em números no Brasil em duas pesquisas de setembro. No “mercado”, 12% aprovam o governo e 47%, não, informa a consultoria Quaest. Entre os brasileiros que ganham até dois salários mínimos, 43% aprovam e 24%, não, conforme o Datafolha.
Biden discursou nas Nações Unidas logo após Lula e mostrou-se a favor da reforma do Conselho de Segurança, formado desde sempre por um quinteto (EUA, China, Rússia, França e Inglaterra) privilegiado com o poder de vetar as decisões da entidade. É, de certa forma, outro tópico a aproximá-lo de Lula. O petista defende essa reforma desde seus mandatos anteriores. Biden foi, aliás, o único líder do conselho presente à Assembleia-Geral. Os outros quatro países mandaram representantes subalternos. Pior para eles. Perderam um discurso e tanto do colega brasileiro. •
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A raiz de todos os males’
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