Justiça
Quanto mais mexe…
O CNJ, o STF e até o doleiro Alberto Youssef dissecam o cadáver insepulto da República de Curitiba


Nos escombros da Operação Lava Jato, ainda há muito entulho a ser revirado. Nas últimas semanas, dois despachos do ministro José Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, e um relatório do Conselho Nacional de Justiça destamparam outros bueiros que o ex-juiz Sergio Moro e os procuradores da força-tarefa de Curitiba gostariam de manter vedados. O odor dos escândalos é inconfundível, uma mistura de desvio de recursos e crimes de lesa-pátria, derivados das parcerias heterodoxas com o Departamento de Estado dos EUA e a Procuradoria da Suíça. Tratou-se, segundo Toffoli, ele mesmo um arrependido em busca de selar as pazes com a própria consciência após o suporte entusiasmado aos desmandos da 13ª Vara no auge do lavajatismo, de “armação, fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado por meios aparentemente legais, mas com métodos e ações contra legem (contra a lei)”.
Na quinta-feira 14, a corregedoria do CNJ concluiu o relatório parcial dos trabalhos da correição extraordinária instaurada para analisar as decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba e de desembargadores do TRF4, de Porto Alegre. De acordo com o corregedor, a administração do dinheiro recuperado nos acordos de colaboração e leniência era “caótica” e indica “possíveis irregularidades relacionadas aos fluxos de trabalho desenvolvidos durante as investigações e ações penais da Operação Lava Jato”. É necessário, prosseguiu, apurar se houve falta disciplinar por parte dos magistrados da primeira e da segunda instâncias. O relatório descreve fatos que indicam a ausência de “zelo nos processos”, a começar pelo acordo entre a Petrobras e o Ministério Público no valor de 2,5 bilhões de reais para viabilizar a criação de uma fundação com objetivos obscuros (certamente, político-eleitorais) a ser administrada pelos procuradores da “República de Curitiba”. A apuração das suspeitas não ficará restrita ao CNJ. O ministro da Justiça, Flávio Dino, prometeu enviar o documento à Polícia Federal. “A PF vai investigar a origem e o destino do dinheiro”, afirmou o ministro. “Basicamente, bem sinteticamente, é: de onde veio, como veio e para onde foi”.
A corregedoria da Justiça quer saber onde foram parar 2,5 bilhões de reais dos acordos de leniência
Um dia depois, na sexta-feira 15, os advogados do doleiro Alberto Youssef, testemunha basilar do chamado “Petrolão”, anunciaram uma representação no STF das arbitrariedades cometidas contra o cliente, devido à instalação, em 2014, de uma escuta ilegal em sua cela na superintendência da PF em Curitiba. O grampo clandestino foi revelado em primeira mão por CartaCapital em 2015, em reportagem do jornalista Marcelo Auler.
A ilegalidade veio à tona por meio do depoimento do então analista de inteligência da PF, Dalmey Fernando Werlang, integrante do Núcleo de Inteligência Policial, especialista em monitoramentos telefônicos e ambientais e responsável pela instalação da escuta na cela número 5 da carceragem horas antes da chegada de Youssef à capital do Paraná. Em entrevista a CartaCapital, Werlang reiterou tudo o que havia dito no depoimento à corregedoria-geral da polícia em maio de 2015. Contou que, na manhã de 17 de março de 2014, foi surpreendido com a presença da cúpula da PF no Paraná, formada pelo então superintendente regional, delegado Rosalvo Franco, o chefe da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado, Igor Romário de Paula, e Márcio Anselmo, da Delegacia de Combate ao Crime Fazendário, ao redor de sua mesa de trabalho. Ainda segundo Werlang, “foi Igor quem falou sobre a necessidade de instalar um equipamento de escuta ambiental discreto em uma das celas”, justamente naquela onde Youssef ficaria detido. Mostrou um croqui da carceragem, a fim de apontar o local exato, e justificou que, como o preso chegaria à noite, a operação deveria estar concluída até o fim da tarde.
O policial em nenhum momento questionou seus superiores, apenas cumpriu as determinações para a instalação do grampo. “Jamais poderia imaginar que se tratava de uma operação sem autorização judicial. Eram pessoas experientes que sabiam o que estavam fazendo.” Na semana seguinte, Werlang viajou para participar de uma ação em Minas Gerais. Na noite de 10 de abril de 2014, enquanto aguardava no aeroporto do Rio de Janeiro uma conexão para Curitiba, recebeu uma mensagem com foto do agente André Luiz Zanotto com uma dúvida: “Aquele equipamento poderia ser o mesmo que fora instalado na cela 5?” O analista reconheceu a peça e respondeu: “Sim, poderia ser”. Foi informado ainda que o “delegado Igor precisava conversar com urgência”. No dia 11, já em Curitiba, Werlang reuniu-se com o superior e soube que Youssef havia descoberto a escuta e informado ao seu advogado. O delegado determinou a destruição dos arquivos referentes à interceptação ambiental. E informou: os colegas Márcio Anselmo e Erika Marena estavam cientes do caso. “Fiquei surpreso com o pedido e perguntei por que apagar, afinal eram mais de 15 dias de escuta com cerca de 260 horas de gravação. Foi quando então o indaguei se não havia autorização judicial. Ao que o Igor respondeu: ‘Pior que não’.” Naquele momento, segundo Werlang, ficou comprovado que a Operação Lava Jato havia “queimado na largada”.
Justiça. O STF iliba Appio. Dallagnol desiste de voltar ao Congresso – Imagem: Bruno Spada/Ag. Câmara e Justiça Federal
A defesa do doleiro pediu explicações à 13ª Vara e Moro negou ter autorizado o grampo. A cúpula da PF preferiu o silêncio, embora a fotografia de Youssef com o equipamento de escuta nas mãos tenha sido divulgada à época. Restaram dois memorandos internos assinados por Anselmo. No primeiro, o delegado “esclarecia que estão sendo elaboradas informações acerca dos fatos noticiados”. No segundo, confirmava ter sido “encontrado um artefato desmontado e que necessitará de perícia para saber do que se trata”. Sugeriu, entre outras medidas, a instauração de sindicância e “que seja elaborada uma informação ao Dr. Sérgio Fernando Moro, da 13ª VF, sobre o ocorrido”.
Uma sindicância foi instaurada às pressas, sob o comando do delegado Mauricio Moscardi. Sem pedir perícia do equipamento, Moscardi concluiu que “o aparelho estava inoperante e teria sido colocado em outro momento com autorização judicial”. Segundo essa tese, o grampo fora instalado em 2008, quando o traficante Fernandinho Beira-Mar ocupava a mesma cela. A sindicância inocentou os colegas envolvidos na trama e sugeriu um inquérito “para apurar a prática de crime de denunciação caluniosa por parte de Alberto Youssef”. As revelações de Werlang levaram, porém, a corregedoria da PF em Brasília a abrir uma segunda sindicância. Convocado a depor, Moscardi voltou a mencionar o nome de Moro. O magistrado, contou, exigia “dar uma olhada” em qualquer material encaminhado pelo delegado.
Na representação ao STF, a defesa de Youssef afirma que a participação de Moro na Lava Jato não se limitava à tutoria do Ministério Público Federal, conforme demonstrado pela Operação “Spoofing”, mas “em procedimentos administrativos exclusivos da corporação Polícia Federal, atuando diretamente junto ao delegado sindicante e influenciando nos procedimentos de conduta”. Diz ainda que o ex-juiz não determinou a instauração de inquérito policial para investigar os fatos relatados, o que torna evidente “que a sua interferência na sindicância, além de indevida e ilegal, demonstra sua parcialidade nas apurações sobre a escuta ilegal instalada na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba”. Lembra que, ao contrário do inquérito policial, uma sindicância administrativa não pode ser submetida ao controle jurisdicional. “A sindicância é um procedimento administrativo restrito à autoridade administrativa, não existindo a possibilidade de interferências do magistrado como ocorreu no presente caso”.
Youssef quer acesso à sindicância sobre o grampo ilegal em sua cela
Os advogados de Youssef pedem ao STF a instauração de procedimento próprio para apuração da suposta interferência de Moro nos atos relacionados ao episódio dos grampos ilegais, além de uma cópia integral das apurações sobre as escutas. Pleiteia ainda o acesso aos autos das sindicâncias e o envio dos áudios captados ilegalmente. Para Giovana Ceccilia Jakiemiv Menegolo, que assina a representação em parceria com Luís Gustavo Rodrigues Flores, o acesso às informações tende a trazer à tona condutas ilegais durante a Lava Jato. “Isso evidenciaria a necessidade de haver um juiz para conduzir as investigações e outro para julgar. Ou seja, a figura do juiz de garantias.” Os argumentos da representação, acrescenta a advogada, estão embasados em documentos que evidenciam a existência de indícios de manipulação dos procedimentos instaurados para apurar o crime de modo a proteger os envolvidos. “Com a abertura de um procedimento específico para apurar tais fatos, certamente outros elementos irão surgir e subsidiar futuras decisões. Assim, teríamos uma investigação conduzida sem interferências ou direcionamento, como foi feito à época em que a raposa cuidava do galinheiro.”
A história não acaba aí. Na terça-feira 19, em nova decisão, Dias Toffoli anulou os processos de suspeição e administrativo abertos pelo TRF4 contra o juiz Eduardo Appio, afastado do comando da 13ª Vara de Curitiba. O despacho do ministro abre caminho para o eventual retorno de Appio às funções e à retomada da devassa promovida pelo magistrado nas gavetas da Lava Jato. Coincidência ou não, o substituto de Moro investigava, entre outros delitos da República de Curitiba, o desvio dos tais 2,5 bilhões de reais. Recordar é viver: a fundação de Dallagnol só não ficou de pé por conta da decisão do STF de barrar os delírios de poder dos procuradores da força-tarefa. Mais: caso venha a reassumir o posto, Appio retomaria o caso do advogado Rodrigo Tacla Duran, que sustenta ter sido extorquido por Carlos Zucolotto Júnior, ex-sócio de Rosângela Moro, atualmente deputada federal. Zucolotto, diz Tacla Duran, teria cobrado 5 milhões de reais em troca de um acordo de delação premiada favorável ao acusado, que atuou como consultor da Odebrechet.
Enquanto as entranhas do lavajatismo continuam a ser expostas, seus dois expoentes transitam entre o limbo, o ocaso e a infâmia. Após o Tribunal Superior Eleitoral rejeitar seu recurso, Dallagnol desistiu de recorrer ao STF para tentar recuperar o mandato de deputado federal. O julgamento do atual senador Moro por abuso de poder econômico nas eleições deve entrar na pauta do TRE do Paraná em novembro. A maioria dos especialistas aposta em cassação do mandato, dada a fartura de provas contra o ex-juiz. Abandonado à própria desgraça, salvo algumas viúvas no colunismo político, resta a Moro recorrer ao velho expediente que tanto o aproxima de Jair Bolsonaro. Apesar de as denúncias partirem essencialmente do CNJ, órgão judiciário independente, o senador prefere mirar no presidente Lula. “Indecente usar o aparato estatal do governo federal para investigar crimes e ilícitos imaginários de agentes da lei que recuperaram 6 bilhões de reais roubados da Petrobras”, escreveu na rede X (antigo Twitter). •
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
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