Justiça
Justiça ancestral
O Judiciário brasileiro tem muito a aprender com o sistema de resolução de conflitos dos povos originários


Márcio Rosa da Silva, promotor de Justiça e professor de Direito da Universidade Federal de Roraima, fez o caminho inverso da maioria dos acadêmicos. Em vez de percorrer os países do Primeiro Mundo para ampliar seus conhecimentos, esse paranaense natural de Goioerê, município com 28 mil habitantes, preferiu adentrar as matas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol para aprender com os povos originários conceitos jurídicos.
O interesse começou em 2010, na dissertação do mestrado em Direito Ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas. “Estudei um fenômeno pouco conhecido, a adoção de crianças indígenas por outras famílias indígenas”. Documentou dois casos, um entre os Yanomâmi e outro com os Ingarikó. Os processos de adoção ocorreram segundo as normas e ritos de cada uma dessas etnias e, posteriormente, foram validados pelo sistema jurídico estatal. Passados cinco anos, ao dedicar-se à tese de doutorado em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco, voltou pesquisar o sistema de justiça de povos originários.
“O fato de viver em um estado com 46% do território ocupado por terras indígenas foi uma motivação a mais. Trata-se de uma enorme riqueza em termos de diversidade cultural, social, política e jurídica. Temos muito que aprender com eles”, diz. A pesquisa resultou na publicação do livro Sistema de Justiça Indígena – Aspectos Jurídicos e Antropológicos (Editora Fórum). O que mais chamou sua atenção foram os ritos usados por alguns povos para a resolução de conflitos, sem a necessidade de recorrer à Justiça comum. “Quis saber mais sobre o funcionamento dessas regras, suas estruturas e como o Estado lidava com isso.”
São sistemas seculares, estabelecidos muito antes da chegada dos espanhóis e portugueses ao continente americano. Onde existe um grupo humano, explica Silva, sempre haverá necessidade de um sistema para a resolução de conflitos. “Os invasores europeus é que desconsideraram as civilizações que aqui habitavam”, lamenta. Cada povo tem o seu próprio modelo, a diversidade é enorme. “Os povos indígenas não são um bloco monolítico. No Brasil, existem mais de 300 etnias que falam ao menos 274 línguas. Precisamos reconhecer essa cultura, sem apagar suas características e costumes.”
Um dos primeiros tópicos que despertaram sua curiosidade foi um fato que se caracterizaria, em nosso Código Penal, como homicídio culposo. Embriagado, um indígena disparou acidentalmente uma arma de fogo contra sua esposa, que veio a falecer. A família da vítima foi a primeira instância acionada, mas não foi possível apaziguar a situação. A segunda foi o Tuxaua, liderança política presente em praticamente todas as etnias da região Raposa Serra do Sol. Também não houve êxito. Por fim, foram mobilizadas as duas instâncias mais proeminentes da comunidade, o Esak e o Pukkenak.
O Pukkenak é a maior autoridade entre os Ingarikó, com poderes políticos e religiosos. É o guardião da sabedoria, sempre consultado e ouvido quando ocorrem problemas graves. O Esak é o representante do Pukkenak nas comunidades. Neste caso, coube a ele, o Esak, após tomar conselhos com o Pukkenak, conduzir o julgamento do marido da vítima.
Na prática, as lideranças indígenas aplicaram um método muito semelhante ao usado na Justiça Restaurativa. Todos os envolvidos foram consultados. Os familiares da vítima falaram sobre a tristeza, a revolta, o instinto de vingança e o desejo de reparação. A família do “réu” expressou apreensão e frustação. Finalmente, o acusado falou. Externou todo o seu arrependimento, prometeu não consumir mais bebidas alcoólicas e disse que, na medida do possível, desejava reparar o mal que havia provocado.
Visão. O promotor lamenta a visão colonialista que pressupõe a superioridade do modelo estatal sobre os métodos tradicionais – Imagem: Redes sociais
Após um acordo entre as partes, coube ao Esak proferir a sentença e determinar as medidas restritivas. Além do veto ao consumo de álcool, o réu foi impedido de se envolver com outra mulher por um ano e assumiu a responsabilidade pela guarda e cuidado dos filhos. Comprometeu-se, ainda, a prestar serviços à família da vítima. Não consta que o infrator tenha se envolvido em outro problema. O caso não chegou à Justiça comum.
Em outra situação, também um caso de homicídio, uma comunidade da etnia Macuxi reuniu-se e proferiu a sentença. Não achando suficiente, um conselho interétnico formado por líderes de povos vizinhos intercedeu no processo e pediu a revisão da pena. Estabeleceu uma série de sanções, inclusive o afastamento do réu da comunidade por certo período. O caso chegou à Justiça comum. A denúncia do Ministério Público foi rejeitada sob o argumento de que o crime já havia sido punido pela comunidade, por seus próprios métodos. Houve recurso ao Tribunal de Justiça, que manteve a decisão e reconheceu a jurisdição indigenista.
O Judiciário e o Ministério Público avançaram bastante nesse tema. A Resolução 287/2019, do Conselho Nacional de Justiça, recomenda aos juízes que a responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertence a pessoa acusada. Também dispõe que a autoridade judicial poderá adotar ou homologar práticas de resolução de conflitos e de responsabilização em conformidade com costumes e normas da própria comunidade indígena.
“Apesar de ser apenas uma recomendação, trata-se de um enorme avanço”, diz Silva. Ele ressalva, porém, que ainda há uma visão colonialista no Judiciário, que pressupõe a superioridade do sistema estatal em relação aos métodos tradicionais. “Não são. Trata-se de sistemas diferentes e que podem muito bem coexistir. Aliás, se for usar a métrica dos resultados, é bem provável que os sistemas indígenas sejam mais eficientes.”
Os índices de reincidência criminal no Brasil parecem confirmar a tese do promotor. Mais de 37% dos egressos do sistema carcerário voltam a cometer crimes até cinco anos após a liberdade, revela um estudo do Departamento Penitenciário Nacional. As sanções aplicadas por povos indígenas são mais efetivas. Não provocam fissuras tão graves no tecido social e reintegram os infratores à comunidade. Após 25 anos de experiência no Ministério Público, Silva acredita que o sistema de Justiça estatal teria enorme ganho se buscasse inspiração nos meios de resolução de conflitos indígenas. “O Brasil ainda conhece muito pouco os seus vários Brasis.” •
Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.
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