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Mutações do capitalismo

O bloco de países reage aos danos provocados pelo poder do dólar

Mutações do capitalismo
Mutações do capitalismo
Órbita. Sempre rodando em torno do Sol americano, os sacerdotes da grande mídia auguram o fracasso do novo arranjo e a perda de importância do Brasil – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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Doze anos após a entrada da África do Sul no grupo, os BRICS voltaram a ampliar o número de países membros. A partir de 2024, entrarão Argentina, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Irã e Arábia Saudita.

A reunião de Johannesburgo revelou aos incréus que habitam o mundo pronto e acabado, sempre rodando em torno do Sol americano, que Galileu tinha razão quando – sob o acicate da Inquisição – proclamou Eppur se muove.

No Brasil varonil, os sacerdotes da grande mídia dispararam editoriais. Sempre maculadas por sua fé p­tolomaica, as peças opinativas auguram o fracasso do novo arranjo e assinalam a perda de importância do Brasil diante do surgimento de novos membros.

Entre os fenômenos cruciais do capitalismo de todos os tempos estão as rápidas mudanças na geoeconomia mundial. As posições relativas de países, continentes e classes sociais sofrem, já há algum tempo, alterações tão radicais quanto perturbadoras.

Em meados do século XIX, as economias retardatárias se desenvolveram sob o “livre comércio”, patrocinado pela hegemonia industrial e monetário-financeira inglesa. No fim do século, a ­belle époque iria desfilar seu aplomb e suas aparências à beira do abismo cavado pelo protecionismo crescente e pelas disputas imperialistas travadas entre a Inglaterra, os Estados Unidos e a Alemanha.

O equilíbrio entre as potências e o padrão-ouro clássico foram as marcas registradas do apogeu da Ordem Liberal Burguesa, um conjunto de práticas e instituições encarregadas da coordenação de um arranjo internacional que abrigava a hegemonia financeira inglesa.

O liberalismo britânico fomentou o desenvolvimento das “novas” economias industriais dos trusts e cartéis nascidos na Alemanha e nos Estados Unidos e a constituição de uma periferia “funcional”, fonte produtora de matérias-primas e alimentos.

As transformações ocorridas no sistema capitalista entre o crepúsculo do século XIX e a aurora do século XX não podem ser compreendidas sem se levarem em conta três fatores: os efeitos das guerras mundiais, as mudanças no padrão monetário internacional e as alterações na divisão internacional do trabalho.

Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, explicita-se a fragilidade da Inglaterra como centro principal capaz de coordenar as finanças internacionais, dada a presença perturbadora de Wall Street e a ascensão dos centros financeiros concorrentes no continente europeu.

No fim do século XIX, os EUA já eram a economia industrial mais poderosa do planeta, além de ostentar – graças à excepcional dotação de recursos naturais – a posição de grande exportadora de matérias-primas e alimentos, e de contar com Nova York, um centro financeiro e de negócios, capaz de promover, simultaneamente, o investimento de alto risco em novos setores e a rápida centralização de capitais.

Em 1913, a capacidade industrial americana havia ultrapassado com folga a de seus principais competidores europeus, Alemanha e Inglaterra. Mas a constituição da hegemonia americana não pode ser compreendida sem a avaliação dos efeitos das duas grandes guerras, a de 1914-1918 e a de 1939-1945.

O período do entreguerras liquidou de vez a hegemonia inglesa consubstanciada no imperialismo do livre comércio e no padrão-libra-ouro. As dívidas de guerra e a nova divisão internacional do trabalho converteram rapidamente a Pérfida Albion em uma potência decadente. Os Estados Unidos assumem a posição dominante em termos econômicos e financeiros e saem do conflito com mais da metade das reservas em ouro mundiais.

As concepções ossificadas – à direita e à esquerda – deixam de examinar o conjunto de relações que estruturam o capitalismo como uma organização econômica, social e política singular, singular porque histórica. Isso significa que essas relações se reproduzem num movimento incessante de diferenciação e autotransformação no interior de sua estrutura. Não há determinismo nem indeterminação: o capitalismo transforma-se no processo de reprodução de suas estruturas.

Seguimos com outro movimento. Nos anos 70 do século passado, os desequilíbrios crescentes do balanço de pagamentos americano levaram à breca o sistema de conversibilidade e taxas fixas de Bretton Woods, ao impor a desvinculação do dólar em relação ao ouro em 1971 e a introdução das taxas de câmbio flutuantes em 1973. A continuada desvalorização do dólar nos anos 70 colocou em apuros a economia mundial.

Concepções ossificadas, à direita e à esquerda, deixam de examinar um conjunto de relações

A crise de estagflação e da baixa “produtividade” dos anos 70 do século passado foi enfrentada com a elevação da policy rate deflagrada por Paul Volker em 1979. A elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda de reserva.

A recuperação da força do dólar, como moeda de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A partir do início dos anos 80, intensificou-se o movimento de migração da indústria manufatureira para as regiões nas quais prevalecia uma relação câmbio/salários mais competitiva e ampliaram-se os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa.

Nas três décadas seguintes, à sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos promoveram as políticas de abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi. Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores da finança e da moeda universais.

Nesse período, os deslocamentos tectônicos na geoeconomia mundial – particularmente a ascensão da China como potência manufatureira – produziram mais um episódio fascinante do processo de “destruição criadora. O movimento dos BRICS revela a reação de um conjunto de países diante dos percalços a eles causados por uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar.

Em seu excelente artigo a respeito do evento, José Luís Fiori observou que “a reunião de Johannesburgo não criou uma nova moeda nem discutiu abertamente a criação dessa moeda. Mas de forma discreta antecipou a substituição do dólar nas transações energéticas entre os ­países membros do grupo e desses países com todas as suas ‘zonas de influência’. E este talvez seja o maior golpe desferido até hoje contra a hegemonia do dólar, desde os Acordos de Bretton Woods, em 1944…” •

Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.

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