Maria Rita Kehl

Opinião

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Inimigo interno

A militarização de nossas polícias tem, como efeito nada secundário, o fato de produzir homens preparados para guerrear contra… o próprio povo

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Para 79% dos entrevistados, as abordagens policiais são baseadas na cor da pele, no tipo de cabelo e vestimenta – Imagem: Prefeitura de Cajamar/GOVSP
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O relatório final da Comissão Nacional da Verdade traz recomendações às polícias brasileiras. Uma delas é a desmilitarização das forças. O leitor já parou para pensar por que nossas polícias são militares? O preparo dos policiais que deveriam proteger a população equivale ao preparo dos soldados que vão para a guerra? O leitor pode pensar que este “detalhe” não tem importância. Mas tem. A atribuição das polícias é proteger os cidadãos. O preparo militar tem outro foco: preparar atiradores capazes de abater inimigos em um conflito armado.

A militarização de nossas polícias tem, como efeito nada secundário, o fato de produzir homens preparados para guerrear contra… o próprio povo. O pretexto é sempre o mesmo: alega-se “resistência seguida de morte”. Não importa se a pessoa assassinada estivesse desarmada. Aliás, um dos procedimentos que tentam justificar o tal “auto de resistência” consiste em colocar uma arma na mão do defunto para forjar um inexistente confronto. Quem se importa em verificar a existência de resíduos de pólvora nas mãos deste que supostamente teria resistido a tiros à abordagem policial?

Depois do golpe fantasiado de legalidade contra a presidente Dilma ­Rousseff, a divulgação do relatório da CNV ficou muito comprometida. As polícias continuam militares. Os “autos de resistência” continuam a justificar assassinatos. Não em nossos bairros, leitores. Raramente entre membros de nossas famílias. Mas nas favelas, nas periferias do Brasil. Suas vítimas mais frequentes: os pobres e, entre os eles, de “preferência” os negros.

A última chacina que abalou, não digo o Brasil (infelizmente, muita gente apoia os crimes cometidos pelas Polícias Militares), mas boa parte da população, produziu 18 mortes. Os leitores já devem ter identificado a Baixada Santista, no litoral paulista, onde a polícia promoveu o massacre mais escandaloso das últimas décadas. Os agentes dispensam os ritos legais para condenar cidadãos, sejam criminosos comuns ou meros suspeitos. Embora a PM não tenha a atribuição de julgar criminosos, os membros da corporação não parecem ter constrangimento algum em punir com a pena de morte um número incontável de “suspeitos”.

Em retaliação ao assassinato de um policial, 16 moradores de bairros periféricos da Baixada Santista foram assassinados por PMs. Entre eles, um indigente, um pedreiro, um garçom. A justificativa é sempre a legítima defesa, mesmo que o suposto assassino não tenha resíduos de pólvora nas mãos. Além disso, segundo reportagem da Folha de S.Paulo, a PM demorou cerca de cinco horas para informar as mortes que ela causou no Guarujá.

O uso de câmeras nas fardas dos policiais tem o efeito de reduzir os crimes cometidos por PMs. O governador paulista, quando candidato em 2022, prometeu abolir o seu uso. Começou por cortar o orçamento para a compra, congelando o número delas. Depois, percebendo que pegou mal, recuou da decisão. Mesmo assim, menos da metade das mortes causadas pela PM no Guarujá e em Santos têm imagens capazes de identificar os assassinos. Escrevi “assassinos”, porque a atribuição das polícias – a não ser em casos de defesa pessoal – não é matar, mas deter.

Lembremos do pedreiro Genivaldo, preso em uma abordagem de trânsito. Ele já estava detido, dentro do camburão. Mas, num requinte de crueldade, um dos agentes da Polícia Rodoviária Federal lançou uma bomba de gás lacrimogêneo dentro da caçamba onde haviam jogado Genivaldo. O rapaz morreu asfixiado.

Como agiria uma polícia não militarizada? Não é difícil imaginar. Sua atribuição não seria a de lutar contra a população negra e pobre. Seria a de deter um criminoso pego em flagrante, ou mesmo um “suspeito”, e entregá-lo à justiça. O que é muito diferente de encarregar-se de fazer justiça com as próprias mãos. Os policiais não fazem isso nos bairros “nobres”, e sim nas comunidades pobres onde também moram. Nas ruas escuras das periferias, os PMs cumprem seu dever de vingança e atiram no entregador de pizza. Atiram no menino que esperava a noiva no ponto de ônibus, nos anônimos que conversam desprevenidos numa esquina qualquer. No motoboy que fugiu assustado – quem mandou fugir? E ninguém, a não ser os familiares das vítimas, reprova a polícia pelas execuções sumárias desses “suspeitos”.

Por fim, o arbítrio e a truculência com que tratam a população pobre contribui para o prestígio dos chefes do crime, que às vezes se oferecem às comunidades como única alternativa de proteção. •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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