Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

No Sudeste ou no Nordeste, só cabe a ética da delicadeza

Entre a fala do governador Zema, a luta contra a fome no Brasil, e a multiplicação de vidas exterminadas pela PM,  um fio condutor da alma brasileira

No Sudeste ou no Nordeste, só cabe a ética da delicadeza
No Sudeste ou no Nordeste, só cabe a ética da delicadeza
Jair Bolsonaro e Romeu Zema. Foto: Alan Santos/PR
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Quando a corrida eleitoral de 2022 parecia incerta, ainda sem uma dianteira firme do então candidato Lula da Silva, uma experiente cientista política anteviu um resultado tão simples quanto decisivo. As mulheres dariam a vitória a Lula porque mães de família não admitem a ideia de uma criança passando fome. A fila de pessoas para receber a doação de ossos em açougues no Mato Grosso em 2021 havia sido mais uma fotografia dolorosa que atravessou a alma de quem nutre a dignidade e deseja o mesmo para os demais. 

O número de 33 milhões de famintos, identificado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) no ano passado, mostrou a brutalidade de uma política insensível que cortou os vasos comunicantes para chegar a quem mais precisava. Não era só o efeito colateral da pandemia, mas o reflexo de um governo que, logo de cara, refreou a atuação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), criado em 1993. 

 O Brasil, que mal superava a Covid-19 àquela altura, chegava a 2022 com um contingente equivalente à população da Venezuela sem comida segura na mesa, diante da política demofóbica de Paulo Guedes. Mesmo quem detesta Lula, apertou o nariz e votou porque J.B. é sinônimo de tudo o que tira a dignidade de um ser humano.

Desde a campanha dos anos 1990 ‘Quem tem Fome tem pressa’, do sociólogo Betinho de Souza, o país percebia que a solidariedade era um pilar dos brasileiros, capaz de costurar uma rede nacional de voluntários, estudiosos e profissionais que viriam a construir uma nova forma de amenizar aquela chaga, até que o Brasil saiu do mapa da fome, em 2014. “Betinho entendia que a ética do Brasil não tolera que alguém passe fome”, diz Sandra Chaves, presidente da Penssan, e professora da Universidade Federal da Bahia. 

Pouco se fala dessa ética brasileira. Nunca se joga luz sobre o Brasil feito da empatia inerente à grande massa, que une o país de ponta a ponta. Que dorme mal em dias frios imaginando quem está morando na rua, que participa de mutirões para ajudar famílias atingidas por inundações, por desabamentos de morros, pela seca. Que quebra a cabeça pensando de que forma fazer valer a justiça com quem mais precisa. 

Quando se discorre sobre o DNA nacional, repetem-se os mitos arcaicos do brasileiro malandro, do sujeito que busca um jeitinho para levar vantagem, ou do brasileiro preguiçoso. Vira e mexe há alguém fazendo proselitismo em cima desses mitos para justificar a famigerada meritocracia, ou o neoliberalismo de ocasião. 

O governador mineiro Romeu Zema (Novo), por exemplo, vem apelando a esse imaginário canhestro para se colocar como uma liderança alternativa para 2026. Em sua cruzada para unir os governadores do sul e sudeste, falou, em entrevista neste final de semana ao jornal O Estado de S. Paulo, do Norte e Nordeste como os estados similares a ‘vaquinhas que produzem menos’, portanto não deveriam ter tratamento diferenciado em programas especiais, como o fundo social. 

Não foi a primeira vez em que ele olhou o Brasil como jogo de batalha naval, dos estados ricos contra os estados mais pobres. Em 2 de junho, ele já havia feito outra menção desastrosa. “No Sul e Sudeste, temos uma semelhança enorme. Se há Estados que podem contribuir para este país dar certo, eu diria que são estes sete Estados aqui. São Estados onde, diferentemente da grande maioria, há uma proporção muito maior de pessoas trabalhando do que vivendo de auxílio emergencial”. A frase sinuosa dá a entender que os nordestinos querem se encostar em ajudas do governo, que trabalham menos. É o argumento dos acomodados, que não sabem ler nada além de planilhas, e se levam pelo preconceito. 

Essa fala acabou caindo no esquecimento. Mas o copo já vinha enchendo até a gota d’água na entrevista do final de semana. A reação, desta vez, foi enfática, até mesmo entre seus pares mineiros.

 Inadmissível, para dizer o mínimo. Zema parece ter sepultado com anos de antecedência qualquer ambição política mais alta, como a presidência da República. 

O Brasil já entendeu que esse desmerecimento por nordestinos é um veneno que precisa ser extinto. Em 2007, o movimento ‘Cansei’, de empresários contra o governo Lula, morreu pela boca do então presidente da Phillips, Paulo Zottolo, ao afirmar que “não se pode pensar que o país é um Piauí, no sentido de que tanto faz quanto tanto fez. Se o Piauí deixar de existir, ninguém vai ficar chateado”. 

O repúdio ao preconceito revela outra face da ética brasileira que ganha musculatura, à medida que o país tem mais consciência da sua história. É preciso reconhecer e valorizar esses passos, ainda que sejam insuficientes para reduzir outro monstro que o Brasil ainda tolera ou não sabe como ajudar a coibir. 

 As chacinas cometidas por policiais em São Paulo, na Bahia e no Rio de Janeiro nos últimos dias, por exemplo, expõem nossa tolerância ao extermínio de pessoas, especialmente crianças e jovens negros, em nome do combate ao crime.

Não se trata de má fé de toda a sociedade, mas da manipulação do medo da violência para manter a política de extermínio nas polícias militares. Foram 30 mortes em 8 dias na Bahia, governada pelo petista Jerônimo Rodrigues, do PT, 16 em São Paulo, com Tarcísio de Freitas (Republicanos) e mais de 10 mortes no Rio de Janeiro até o momento, incluindo Thiago, estudante de 13 anos, executado com cinco tiros.  

Nesse ponto, Sudeste e Nordeste, esquerda e direita, se encontram juntinhos na propagação da violência maldita, na crença de que prestam contas à sociedade entregando ‘CPFs cancelados’ para o regozijo de maníacos. Aqui não há separatismo.

Só que a alma do Brasil real não combina com essa indiferença, essa tolerância, esse estímulo silencioso a preservar uma política assassina. O número de inocentes assassinados nestas empreitadas não pode continuar. A falsa sensação de segurança vendida por essas operações nos torna cúmplices do extermínio de vidas humanas inocentes.

Voltando a Betinho, e à ética que não tolera a fome, o país precisa amadurecer o direito à vida como um valor, um princípio basilar do país como nação, que não pode ser terceirizado a forças militares. Temos o enorme desafio de reconhecer nossa falha coletiva de silenciar diante das dezenas de lares destruídos. Só então vamos entender que é preciso punir quem está a serviço da política assassina. Seja quem dá as ordens ou quem aperta o gatilho. 

O Brasil tem um capital poderoso dentro da sua ética da delicadeza e é por ela que precisamos crescer. Assim como o país conseguiu desenvolver um ecossistema de proteção para quem tem fome, e rebater líderes preconceituosos como Romeu Zema, falta-nos um olhar mais generoso para enfrentar a violência do Estado.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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