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Negro vs. verde

O litoral amazônico é rico em petróleo, mas a preocupação ambiental é um freio à sua exploração

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Imagem: iStockphoto
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A América do Sul tem um lugar com espantoso avanço econômico. A pequena Guiana, país do tamanho de Rondônia e com população igual à do Acre (800 mil pessoas), cresceu 43% em 2020, 20% em 2021 e 62% em 2022. O ritmo continuará forte neste ano (37%) e no próximo (45%), conforme o FMI. O “ouro negro” explica o fenômeno. Em 2015, a americana Exxon descobriu petróleo na costa da Guiana e começou sua exploração comercial em 2019. O país entrou para a lista dos 20 maiores produtores (1,2 milhão de barris/dia) e detentores de reservas de óleo (11 bilhões de barris). A riqueza tornou-se tema dominante lá.

Os dois principais grupos étnico-políticos (os 40% de origem indiana, como o presidente Irfaan Ali, e os 30% de ascendência negra) lutam pelo destino do dinheiro. A possibilidade de haver petróleo na costa brasileira na altura da Amazônia, nas imediações da Guiana, também é motivo de disputas e de uma situação difícil para Luiz Inácio Lula da Silva. De um lado, o interesse econômico interno. De outro, a bandeira internacional da proteção ambiental.

Fonte: Petrobras

A exploração de petróleo na costa amazônica deve ser um dos principais assuntos de uma reunião que acontecerá em 8 e 9 de agosto, em Belém, de presidentes de países que têm nacos da Amazônia. A iniciativa brasileira de tentar encontrar óleo no litoral amazônico, na chamada Margem Equatorial, surgiu no governo Dilma Rousseff, após a holandesa Shell ter encontrado, em 2011, “ouro negro” no litoral da Guiana Francesa, país fronteiriço ao Brasil.

Em 2013, a Agência Nacional do ­Petróleo realizou um leilão de 150 blocos exploratórios localizados a leste do poço da Shell, numa área que abrange ­Amapá, ­Pará, Maranhão, Piauí, ­Ceará e Rio ­Grande do Norte. Dilma via uma chance de estimular o desenvolvimento das regiões Norte e Nordeste, como lembra a diretora-geral da ANP da época, ­Magda ­Chambriard. Mais de 90% da produção nacional de óleo concentrava-se no ­Sudeste, índice que permanece.

Estima-se que as reservas da Margem Equatorial podem chegar a 16 bilhões de barris, mais do que o Brasil tem hoje

A diversificação econômica é um argumento sedutor. A cidade fluminense de Maricá, por exemplo, ganha tanto dinheiro com royalties do pré-sal que oferece um Bolsa Família local e transporte público gratuito. Em maio, oito dos nove governadores da Amazônia Legal divulgaram uma carta aberta a favor da perfuração do poço pela Petrobras. Era uma reação à decisão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, o Ibama, de ter negado dias antes uma licença para a Petrobras testar um poço no litoral do Amapá. Negar a licença atingiu não só a estatal, afirma a carta, mas “os interesses da população de todos os estados da Amazônia”. “Está se exigindo que o Brasil renuncie a essa riqueza”, que poderia melhorar a vida nas duas regiões mais pobres, diz o engenheiro Allan Kardec Barros, ex-diretor da ANP e hoje professor na Universidade Federal do Maranhão.

A Universidade Federal do Amapá sediou nos últimos dias o primeiro Simpósio Estadual de Geografia, e a vedete dos debates foi o projeto petrolífero na costa amapaense. No evento, a geóloga Marina Abelha, superintendente de promoção de licitações da ANP, estimou que as reservas de petróleo na Margem Equatorial podem chegar a 16 bilhões de barris. É mais do que o Brasil tem hoje, 14 bilhões, a 15a maior reserva do mundo (a maior é da Venezuela, 300 bilhões).

Satisfação. Lula terá de convencer os líderes europeus de que a exploração a 175 quilômetros da costa é segura – Imagem: Emmanuel Dunand/AFP

Essas reservas não vão durar muito: cerca de 12 anos, conforme projetou em junho, em debate com deputados, um técnico do Ministério de Minas e Energia, o geólogo Rafael Bastos da Silva, diretor do Departamento de Política de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural. Com base no que se tem visto nas Guianas e no Suriname (que fica entre aquelas duas e achou nos últimos anos reservas de 3 bilhões de barris em seu litoral), Bastos acredita que explorar a Margem Equatorial vai gerar 56 bilhões de dólares em investimentos e 200 bilhões de dólares em receitas para o Brasil.

À frente da Petrobras de 2005 a 2012, o economista José Sérgio Gabrielli diz que a eventual descoberta de petróleo na costa amazônica brasileira vai incentivar a construção de uma nova refinaria no País (no Maranhão ou no Ceará). Isso, claro, se a estatal não quiser só exportar óleo cru. Para Gabrielli, as projeções sobre a demanda global de óleo e o ritmo da transição energética, que é a substituição de combustíveis mais poluentes por menos, indicam que o Brasil não pode abrir mão, ainda, de produzir petróleo. Nossa produção, afirma Gabrielli, é concentrada no pré-sal (75%) e começará a cair a partir de 2028 ou 2029.

Lula espera que os países amazônicos adotem posição única em defesa da floresta para levar à COP-28

Entre a decisão de perfurar um poço e o início de sua produção comercial, prossegue, são sete, oito anos. Para não ficar dependente de importações, o Brasil precisaria investir já. “A Margem Equatorial é geologicamente uma ­continuidade de três países (as duas Guianas e o Suriname) que tiveram muitas descobertas nos últimos dez anos, então provavelmente a Petrobras vai achar. Mas, certeza, só com a perfuração”, diz. E acrescenta: o poço precisa de cuidados adicionais de segurança, pois se trata de uma região ambientalmente “frágil”.

O poço que a estatal quer perfurar fica em uma daquelas áreas leiloadas em 2013 pela ANP. O bloco FZA-M 59 havia sido arrematado pela British Petroleum. A BP, multinacional inglesa, desistiu do negócio no fim de 2020. Fazia cinco anos que apresentara ao Ibama os estudos de impacto ambiental, em busca de uma licença. A Petrobras assumiu o bloco. Sua intenção é realizar agora de cinco a seis meses de testes no poço selecionado. Este tem cerca de 7 mil metros de profundidade. Situa-se a 175 quilômetros da costa brasileira no ponto mais próximo dela, que é no Amapá, e a 530 quilômetros da foz do Rio Amazonas. A foz é onde o rio deságua. O rio e o que ele carrega de vida (fauna, flora etc.) chegam 300 quilômetros adentro do Oceano Atlântico.

Indefinição. Marina Silva evita dar uma resposta direta sobre o aval para a perfuração de poços. Aparentemente, a decisão será dada pelo chefe dela – Imagem: Arquivo/Ag. Petrobras e Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR

Esse avanço do rio rumo ao mar “é um fenômeno único e permite estudar a transição da vida entre água doce e a salgada”, segundo Ennio Candotti, diretor-geral do Museu da Amazônia e ex-presidente da SBPC, a Sociedade para o Progresso da Ciência. Em 30 de maio, Candotti enviou ao chefe da articulação política do governo, Alexandre Padilha, uma carta em que propunha criar um Instituto da Foz do Amazonas, para monitorar e pesquisar um ecossistema rico em geologia e biologia. Defendia ainda um cordão de 200 quilômetros em torno da foz, dentro do qual não se poderia explorar petróleo. Como a profundidade de um poço deveria ser observada, é possível que aquele da Petrobras pudesse ser liberado. “Precisamos negociar sem radicalismos, existem muitos interesses envolvidos”, diz Candotti.

Na busca pela licença, a Petrobras informou ao Ibama que a perfuração terá 12 embarcações de apoio: metade para recolher óleo, em caso de vazamento, e metade para monitorar e resgatar animais. O aeroporto a ser usado nos testes, o do Oiapoque, no Amapá, fica a 13 quilômetros da reserva indígena mais próxima. Na hipótese de haver vazamento, o centro de controle de danos está em Belém. A estatal fez reuniões com autoridades de cinco países que poderiam ser afetados por um acidente, em razão de correntes marítimas que arrastariam óleo (as duas Guianas, o Suriname, Trinidad e Tobago e Barbados).

O Ibama não descarta a liberação do projeto, se estudos atestarem a segurança ambiental

Em um parecer de 20 de abril, dez técnicos do Ibama apontaram “inconsistências” nos planos da estatal. Um exemplo: a comunicação com comunidades indígenas, por qualquer motivo, é falha. Outra: “Remota possibilidade de resgate e reabilitação da fauna e, consequentemente, a provável perda da biodiversidade impactada no caso de acidentes envolvendo derramamento de óleo”. Para os técnicos, é “temerário” que, diante de uma nova fronteira petrolífera, não haja “avaliações mais amplas e aprofundadas, que considerem, ao menos, a ­compatibilidade da cadeia de petróleo e gás com as demais vocações econômicas e ecológicas na região”. Uma forma de contornar isso seria elaborar uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar, o AAAS.

Na preparação do leilão da ANP de 2013, o governo Dilma baixou uma portaria que facilitava as coisas para futuros exploradores de petróleo, através de normas sobre AAAS. Esta poderia ser aprovada em portaria dos ministérios das Minas e Energia e do Meio Ambiente. Era uma maneira de reduzir a chance de uma licença ambiental vir a ser negada. Ao endossar, no último dia 17 de maio, o parecer dos técnicos, o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, enfatizou a importância de se elaborar um AAAS agora. Escreveu mais: que a confirmação, em 2016, da existência de um Grande Sistema Recifal da Amazônia exige mais rigor do Ibama na análise do projeto da Petrobras.

Em um debate em junho no Congresso, Agostinho declarou que o Ibama jamais disse “que nunca autorizará a exploração de petróleo naquela região, até porque, no passado, já autorizou a exploração de petróleo nessa região”. Foi uma forma de rebater comentários de que o órgão é contra abrir a nova fronteira petrolífera. Para Agostinho, a riqueza da Amazônia justifica a cautela, e é preciso inclusive observar o risco para países vizinhos. Em 2011, uma sonda da Petrobras na Margem Equatorial foi arrastada por uma forte corrente marítima, o que levou a empresa a abandonar o poço. O episódio foi revelado só em 2012 e, desde então, chama a atenção do Ibama “para as particularidades desta região”, diz Agostinho.

Transição. O Brasil ainda não pode abrir mão de produzir petróleo, diz Gabrielli – Imagem: Marcos Oliveira/Ag. Senado

E qual seria a probabilidade de um acidente? Funcionário da Petrobras por 20 anos e hoje professor de Geologia do Petróleo na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Jorge Picanço de Figueiredo diz que são poucos os casos nos mares brasileiros. O País, afirma, tem 7 mil poços marítimos e poucas ocorrências de ­desastres. Em 1984, a explosão de uma plataforma da Petrobras na bacia de Campos, no Rio, matou 37 pessoas. Em 2001, outra plataforma da estatal, a P-36, afundou na mesma bacia e causou 11 mortes. Em 2011, houve vazamento em uma plataforma da americana Chevron também em Campos, sem vítimas humanas. Em 2015, a explosão de uma plataforma da Petrobras no litoral capixaba provocou nove óbitos. Além de poucos, prossegue Figueiredo, os acidentes em poços marítimos foram contidos. “O discurso que tenho visto na mídia é de que tem petróleo (no poço da Petrobras), que vai ser explorado, que vai ter acidente e que não vai ser controlado. Mas ninguém sabe se será descoberto”, afirma. Com base em 150 anos de indústria petrolífera, prossegue, a chance de a estatal encontrar óleo viável na Margem Equatorial é de 10%.

“Se explorar esse petróleo tiver problema para a Amazônia, certamente não será explorado. Mas eu acho difícil, porque são 530 quilômetros de distância da Amazônia”. Foi o que disse Lula em maio, após o Ibama negar a licença à Petrobras. O presidente estava no Japão, para uma reunião do G20, grupo das maiores economias. Desde a volta ao poder, o petista ergueu a bandeira ambiental. Agosto promete ser um marco nessa empreitada. O governo deve lançar um plano de transição ecológica e economia verde (medidas para reduzir a produção de poluição). A iniciativa encaixa-se na avaliação de que, ante a polarização política, vide a dura eleição contra Jair Bolsonaro, é preciso conquistar eleitores que não votaram em Lula e, hoje, consideram o governo “regular”. É o que diz o ministro da Comunicação Social, Paulo Pimenta. A “sustentabilidade”, afirma ele, tende a ser o tema central do governo e “vai permear todas as políticas públicas”.

Também em agosto, o Brasil sediará em Belém aquela reunião de países amazônicos, e o Lula espera que o grupo adote posição única em defesa da floresta para levar à conferência anual da ONU sobre mudanças climáticas. O Brasil convidou a Indonésia e os dois Congos, que abrigam as outras duas maiores florestas tropicais do planeta, para participarem e, supõe-se, endossarem a proposta que vier a ser levada à COP-28, que ocorrerá entre novembro e dezembro, nos Emirados Árabes. Em 2025, a conferência ocorrerá em Belém.

A Colômbia, um dos países amazônicos, desponta como um problema para ­Lula. Gustavo Petro, um político de esquerda, elegeu-se presidente em 2022 com promessas de conter a exploração petrolífera na Amazônia. Neste ano, o “Ibama colombiano” concedeu licenças para cinco projetos de produção de energia renovável por lá, uma forma de cumprir a promessa de Petro. Em 8 de julho, a Colômbia promoveu, na cidade de Leticia, fronteira com o estado do Amazonas, uma reunião Técnico-Científica da Amazônia, e Lula participou do encerramento. Ao lado dele, Petro discursou: “Vamos permitir a exploração de petróleo na Amazônia? Vamos entregar blocos para exploração”.

A Petrobras pede que o Ibama reveja a decisão de negar a licença ambiental. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, esteve no evento e, em uma entrevista coletiva, foi questionada sobre a possível perfuração de poço a 500 quilômetros da Foz do Amazonas. Ela comentou que Lula tem “forte compromisso” de zerar o desmate ilegal da Amazônia até 2030, de combater o garimpo ilegal em terras indígenas e de incentivar a geração de energias limpas. Mas não deu uma resposta direta à pergunta. A resposta, parece, só o chefe tem. Segundo um auxiliar presidencial, não haverá vencedor vencido entre Ibama e Petrobras. O que vier a ser decidido, será por acordo. •

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

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