Mundo
Pour Nahel
Um mergulho nos dias de fúria após o assassinato, pela polícia, de um garoto de 17 anos


Um adolescente dirigindo um carro é parado por dois policiais de moto que lhe apontam as armas. O garoto, de 17 anos, recusa-se a sair do automóvel e tenta partir, devagar. Um dos policiais atira em seu peito. O jovem consegue dirigir por mais uns metros antes de morrer. Nahel, de origem africana, termina a corrida batendo o carro no poste da Praça Nelson Mandela. Enquanto observo o poste torto e reflito sobre o destino feroz do garoto, chegam pais com filhos para deixar uma flor, uma oração ou uma carta para Nahel.
A Praça Mandela fica em Nanterre, uma das periferias de Paris, tão perto e tão apartada da Cidade Luz.
O policial que atirou no menino dirá logo em seguida ter agido em legítima defesa, mas um vídeo gravado por uma mulher, certificado pela AFP, desmente a versão e mostra como o policial não estava em situação de risco e não tinha necessidade de atirar. Logo após o vídeo viralizar nas redes sociais, milhares de jovens e adolescentes se revoltam por toda a França, lembrando ao país as suas próprias existências. Durante uma semana, a violência explode pelas ruas: milhares de carros incendiados, centenas de lojas saqueadas, toque de recolher e 45 mil policiais mobilizados. O Sindicato das Empresas (Medef) quantifica em mais de 1 bilhão de euros (5 bilhões de reais) os danos econômicos da revolta.
Qual a diferença de outros casos? “Desta vez alguém gravou um vídeo”, diz Abdel Halim
O contexto
Famosa por sua universidade, berço da contestação de maio de 1968, Nanterre agora é um distrito da grande Paris, loteada por conjuntos habitacionais. Ao redor dos enormes prédios-dormitórios, de cores vivas e inquietantes, pululam fast-foods e shopping centers, lugares do consumismo de baixo custo. O jovem Nahel foi criado num desses conjuntos, o Pablo Picasso.
Depois de dias de violentas manifestações, Nanterre parece uma cidade fantasma. Ruas vazias, lojas e centros comerciais fechados, vidraças quebradas e carros carbonizados. Um forte cheiro de plástico queimado nos acompanha. Dos poucos que circulam, quase ninguém quer falar. “Não é o momento”, respondem educadamente. O velório de Nahel tinha acabado de ser celebrado na mesquita da cidade.
Enquanto fotografo uma pichação num prédio com a escrita Justice pour Nahel, um homem aproxima-se, com a filha. Abdel Halim, de 53 anos, mora ali desde sempre. De origem argelina, trabalha como motorista de ônibus. “O que houve com Nahel foi mais um episódio de racismo e aconteceu várias vezes aqui na França, especialmente nos últimos anos.”
Os dados do Ministério do Interior confirmam: em 2022, foram 13 mortos durante revistas policiais. “O que mudou desta vez foi que alguém gravou um vídeo”, afirma Halim.
Na Praça Nelson Mandela, entre flores e cartazes, alguém escreveu: “Quantos Nahel não foram filmados?”
Símbolos. Um carro incendiado durante os protestos, retrato da fúria dos jovens que tomaram as ruas. E o poste contra o qual o automóvel de Nahel se chocou após os disparos – Imagem: Antonello Veneri
Raiva jovem
Entre os mais de 3 mil manifestantes presos/cadastrados pela polícia durante os confrontos e o quebra-quebra, a idade média é de 17 anos. Ou seja, em relação ao passado, os revoltosos são muito mais jovens e fazem uso maciço de Snapchat, Telegram e TikTok. Nessas plataformas e redes sociais eles se organizam e postam breves vídeos para ostentar e comemorar as próprias empreitadas.
Na frente do único fast-food aberto em Nanterre puxo conversa com alguns jovens. Um deles, Samir, de 17 anos, diz conhecer um participante do quebra-quebra. Os amigos do lado riem e comentam. Percebo, por algumas frases, que ele provavelmente participou da confusão dos últimos dias. Repete de forma quase mecânica a frase Justice pour Nahel e, quando pergunto mais sobre esta revolta, não consegue explicá-la e recomeça a comer um hambúrguer e batatas fritas. Quem não está acostumado a ser ouvido, dificilmente encontra respostas, até para si mesmo.
Um fundo de apoio ao policial assassino arrecadou quase 1,5 milhão de euros
Esses meninos do fast-food, assim como Nahel, são filhos e netos dos trabalhadores oriundos das antigas colônias: Marrocos, Tunísia e, sobretudo, Argélia. Novas gerações de franceses que frequentam a escola pública, falam francês, torcem para o Paris Saint-Germain, mas se sentem tratados como imigrantes, visíveis pela sociedade apenas quando decidem arrombar lojas para roubar os tênis da Nike e tocar fogo no próprio bairro. “Mas, se você toca fogo no carro do vizinho, quebra a loja da esquina e os pontos de ônibus, você, além de produzir um dano para a comunidade, abre as portas a políticos como Marine Le Pen, que atuarão de forma ainda mais repressiva contra nós. Isso os jovens não entendem”, lamenta Halim.
Sem voz. Em Nanterre, os moradores quase não falam sobre o assunto ou escamoteiam sua participação nas manifestações. Policiais vasculham a região – Imagem: Antonello Veneri
Violência policial
Enquanto o policial que atirou em Nahel é investigado por homicídio voluntário, a porta-voz dos Diretos Humanos da ONU declara: “Chegou a hora de a França enfrentar seriamente os profundos problemas de racismo e discriminação presentes dentro das forças de ordem”.
Durante a nossa conversa em Nanterre, o motorista Halim questiona o fato de ser abordado por um policial e logo ouvir que vai receber um tiro na cabeça (vídeo do assassinato de Nahel). Abordagem agressiva, falta de diálogo e atitudes racistas são problemas estruturais de uma parte da polícia francesa que pude presenciar ao longo dos anos. Apesar de o presidente Emmanuel Macron ter condenado a ação do policial – “imperdoável” –, não há decisões para uma reforma profunda da instituição.
Parte da França aprova as atitudes repressivas. Emblemática é a diferença na arrecadação de fundos para as partes envolvidas. No caso da mãe de Nahel, eram 350 mil euros até o fechamento desta edição, enquanto os apoiadores do policial contribuíram com 1,45 milhão. •
Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.
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