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O TSE tornará Bolsonaro inelegível por oito anos. Resta saber se a punição ao ex-capitão se resumirá a esta decisão

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Conexões. O relator Gonçalves encadeou os fatos que comprovam as intenções golpistas do então presidente – Imagem: Rafael Luz/STJ e Evaristo Sá/AFP
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Em 13 de julho do ano passado, o cerimonial da Presidência, repartição que organiza eventos do chefe da nação, disparou a órgãos do governo um ofício, o 82. Jair Bolsonaro, informava o despacho, havia decidido convidar embaixadores estrangeiros ao Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente. Por cinco dias o cerimonial enviou 98 convites, sem informar às embaixadas o motivo da reunião, marcada para 18 de julho. Bolsonaro estava uma fera desde 31 de maio, quando o Tribunal Superior Eleitoral reunira 70 embaixadores em um seminário destinado a demonstrar a segurança das urnas eletrônicas e da contagem de votos. Queria rebater o TSE e provar o contrário.

O seminário foi uma ideia do ministro Edson Fachin. Desde sua nomeação à presidência do Tribunal, em fevereiro daquele ano, Fachin desconfiava que a eleição de outubro terminaria em confusão. Bolsonaro e outras figuras do governo tinham dado pistas de que contestariam o resultado. Para o magistrado, a comunidade internacional seria um antídoto ao esperneio, caso fosse convencida da lisura do pleito. Além do seminário, o TSE cogitava convidar observadores internacionais para a eleição. O objetivo de Fachin, conforme uma testemunha dos acontecimentos, era conseguir que vários líderes mundiais, e de peso, reconhecessem o resultado do pleito tão logo terminasse a votação e o Tribunal declarasse o vencedor. Cerca de 40 reconhecimentos foram registrados em uma hora na noite de 30 de outubro.

O julgamento no Tribunal Eleitoral abre a porteira para outros processos

Em 19 de dezembro, com Lula eleito e diplomado pelo TSE, Carlos França, ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, falou à Corte sobre a reunião de 18 de julho no Alvorada. O encontro com embaixadores tinha levado o PDT a impetrar uma ação contra o capitão e seu candidato a vice, o general Walter Braga Netto, por abuso de poder político, uso da máquina pública e utilização indevida dos meios de comunicação. França havia sido arrolado como testemunha do processo. Ao depor, disse que o Itamaraty nunca recebera consulta de embaixadas sobre a eleição e que não é função do órgão se “ocupar de temas eleitorais”. Bolsonaro, prosseguiu, “foi integral e pessoalmente responsável pela concepção intelectual do evento”.

O cerimonial da Presidência havia recebido 84 e-mails de resposta aos convites. A lista de presença no Alvorada tinha 92 nomes, entre embaixadores e vices. Bolsonaro falou por 45 minutos sobre um inquérito da Polícia Federal que investigara um ataque hacker ao TSE na eleição de 2018. Era a prova, segundo ele, do risco de fraude em 2022, ainda mais porque a Corte seria pró-Lula. Enquanto falava, alguns diplomatas presentes trocaram mensagens de celular com integrantes do TSE, de acordo com um destinatário. Estavam espantados com o que viam e ouviam. Seria um dos remetentes o embaixador interino dos Estados Unidos, Douglas Koneff? “(Os norte-americanos) Tinham preocupação sobre a situação dessas discussões políticas e conflitos, né, mas sobre a funcionalidade do sistema (eleitoral), não”, disse o ex-ministro da Casa Civil Ciro Nogueira, ao depor ao TSE em 8 de fevereiro, também como testemunha.

Uma hora após a reunião de Bolsonaro com os embaixadores, a Corte divulgou nota para rebater as alegações. O tribunal havia se preparado: de dez a 12 representantes se comunicavam em um grupo de WhatsApp e definiam quem redigiria qual resposta, enquanto assistiam ao evento pela EBC, a tevê pública. A reunião custou 12,2 mil reais ao Erário, com som, cenografia, iluminação, painel de LED e pessoal, conforme informado ao TSE pela Casa Civil já no governo Lula. E, provavelmente, custará a Bolsonaro oito anos sem disputar eleições.

Consequência. Anos de fake news e conspiratas desembocaram na tentativa de golpe em 8 de janeiro – Imagem: Ton Molina/AFP

Na terça-feira 27, o TSE retomou o julgamento da ação do PDT e o corregedor-geral da Corte, Benedito Gonçalves, relator do processo, votou pela condenação do capitão. Para ele, o abuso de poder político caracterizou-se pelo fato de o então presidente ter se ­aproveitado do cargo para promover ato “eleitoreiro”. Questionar o sistema eleitoral era parte da estratégia de campanha, anotou Gonçalves, e “essa estratégia manteve a coesão de um grupo em permanente estado de alarme”. O corregedor acrescentou: “Restou comprovado que o teor do discurso” do então presidente “disseminou severa desordem informacional” a respeito da eleição. Em 2021, o TSE havia julgado um caso para servir de exemplo aos candidatos de 2022: mentir em vídeo nas redes sociais seria passível de condenação.

Quando esta reportagem foi concluí­da, no início da tarde da quinta-feira 29, outros três juízes tinham votado. Raul Araújo não decepcionou os bolsonaristas. Divergiu de Gonçalves e minimizou os atos do ex-presidente. Floriano de ­Azevedo ­Marques e André Ramos Tavares seguiram o relator e marcaram o 3 a 1 a favor da inelegibilidade. Os votos se alongaram e a sessão foi interrompida por causa de compromissos de magistrados do STF que compõem o TSE. Seria retomada na sexta-feira 30. Faltaria saber o placar final, se ­alguém pediria vistas do processo (Kássio Nunes Marques?) e quando a contagem da pena começaria – após o primeiro ou o segundo turno da eleição? Se fosse no primeiro, o capitão poderia concorrer em 2030. Do contrário, só em 2034, aos 79 anos.

Nos dias anteriores ao julgamento, o ex-presidente aparentou resignação. Na Assembleia Legislativa paulista, comentou que ninguém é “insubstituível”, ou seja, outro candidato pode liderar o reacionarismo nacional. À Folha de S.Paulo, afirmou faltar experiência à esposa Michelle, mas apontou o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, seu ex-ministro, como opção. Segundo diversos analistas, o bolsonarismo está enraizado e o capitão pode tornar-se um cabo eleitoral influente. O Brasil, aponta uma pesquisa Quaest, divide-se sobre o destino de Bolsonaro: 47% a favor da inelegibilidade, 43% contra. “Com a condenação de Bolsonaro, a direita irá se dividir para escolher um candidato em 2026, vão tentar de novo uma terceira via. Nós estaremos unificados em torno do governo Lula”, pondera Henrique Fontana, secretário-geral do PT.

Cabe à Procuradoria-Geral da República decidir sobre ações no âmbito criminal contra Bolsonaro

O julgamento do capitão na área eleitoral tem elementos capazes de complicá-lo na criminal. Gonçalves enviará seu voto ao Tribunal de Contas da União e a dois ministros do Supremo Tribunal Federal: Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Ao TCU, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo, caberá examinar o uso de verba pública em proveito do capitão na a reunião com embaixadores. Fux é relator, no STF, de um processo movido por deputados lulistas com objetivo similar e que inclui possível atentado contra os poderes. Moraes cuida de vários inquéritos que atingem Bolsonaro direta ou indiretamente, e Gonçalves citou dois: o 4.878, sobre o vazamento da investigação sigilosa da PF do ataque hacker ao TSE em 2018, e o 4.879, sobre atos antidemocráticos. Bolsonaro pode ser implicado ainda no caso do quebra-quebra em Brasília em 8 de janeiro, também nas mãos de Moraes.

O voto de Gonçalves diz: “É possível concluir com a segurança necessária” que a estratégia eleitoral do capitão de minar a confiança popular nas urnas e no TSE contribuiu “significativamente para estimular um ambiente de não aceitação dos resultados” da eleição. Para o corregedor, o ambiente de desconfiança criado por Bolsonaro “impactou a normalidade e a legitimidade das eleições” e um exemplo da consequência é a minuta de decreto presidencial encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres em janeiro. A minuta desenhava uma intervenção civil-militar no TSE e anulava a eleição de 2022. “Há um fio condutor que segue toda a campanha de Bolsonaro com ataques às urnas e à Justiça Eleitoral. Essa narrativa redundou no 8 de janeiro. A reunião de 18 de julho com embaixadores e o 8 de janeiro têm tudo a ver”, diz Eugênio Aragão, ex-vice-procurador-geral eleitoral e ex-ministro da Justiça. Tudo o que Bolsonaro falou sobre a eleição, argumenta, serviu de “estímulo intelectual” ao quebra-quebra. Embora o STF tenha tornado mais de mil baderneiros em réus, o capítulo “financiadores” e “mentores intelectuais” patina.

Vexame. Na CPI, o coronel Lawand mentiu e se acovardou – Imagem: Lula Marques/ABR

A minuta não é uma pista solitária sobre o risco de um golpe de Bolsonaro. Em 28 de novembro, o tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, chefe dos ajudantes de ordem da Presidência, fotografou com o celular as páginas de um documento. Este teorizava sobre a falta de moralidade institucional por parte do Supremo, do TSE e de seus juízes, e decretava estado de sítio. Quem assina decreto do tipo é o presidente. A descoberta das fotos levou o delegado Fábio Alvarez Shor, da Polícia Federal, a enviar a Moraes, em 2 de junho, um relatório parcial sobre o conteúdo do celular de Cid, cujo sigilo havia sido quebrado em 2022. O aparelho continha ainda papéis a respeito do uso das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem e como “poder moderador”. Cid, escreveu Shor, “reuniu documentos com o objetivo de obter o suporte ‘jurídico e legal’ para a execução de um golpe de Estado”. Golpe de Estado é crime previsto numa lei de 2021, com pena mínima de quatro anos.

Mensagens trocadas por Cid com outro militar, o coronel Jean Lawand Jr., entre 30 de novembro e 21 de dezembro, reforçam a visão do delegado. Em suma, Lawand, integrante do Estado-Maior do Exército, queria saber de Cid quando Bolsonaro “daria a ordem”. Pelo teor da conversa e o contexto, não há dúvida de que a “ordem” era para os militares entrarem em cena e assumirem o poder. Ao depor à CPI do 8 de janeiro, na terça-feira 27, Lawand mentiu na cara dura. Disse que queria saber quando Bolsonaro daria a ordem para desmobilizar a turma que causava caos no País após a eleição. Faltou peito ao comandante da CPI, deputado Arthur Maia, da Bahia, para dar voz de prisão ao depoente. Cid, recorde-se, está preso preventivamente desde 3 de maio, em razão do caso do cartão fajuto de vacina anti-Covid forjado para Bolsonaro.

Por ora, o ex-presidente não tem com o que se preocupar na esfera criminal. Apesar das descobertas da PF em inquéritos que correm com Moraes no Supremo, só quem pode denunciar envolvidos nesses casos é o procurador-geral da República, Augusto Aras. E este nunca teve apetite para apertar Bolsonaro, responsável por sua chegada ao comando da Procuradoria em 2019. O mandato de Aras termina, no entanto, em setembro. Seu substituto será indicado por Lula. •

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Agora ou depois’

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