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Não basta uma lei

O combate ao discurso de ódio deve ser diverso, criativo e multissetorial

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O espaço virtual não pode ser terra de ninguém – Imagem: iStockphoto
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Nos últimos anos, tem sido crescente a preocupação com as violências nos espaços virtuais e com a disseminação de discursos extremistas e de ódio nas redes sociais. Mais recentemente, chamaram atenção os ataques à democracia e a pessoas com divergências políticas que saíram do ambiente virtual e se materializaram em atentados contra a vida e contra as instituições democráticas. O questionamento sobre a relação entre a falta de controle sobre o que pode ser dito na internet e os episódios graves de violência se intensificou com os ataques a escolas e a violência no ambiente escolar, que acompanhou uma sequência de desmonte de políticas educacionais, de educação em direitos e de políticas de atenção à infância.

Diante desse contexto, tanto na esfera do Poder Legislativo quanto do Executivo têm sido feitas propostas em nome do enfrentamento ao discurso de ódio. Pelo sistema de busca dos sites do Senado e da Câmara dos Deputados, é possível identificar mais de 40 projetos de lei que mencionam essa expressão, e que, na sua maioria, propõe a responsabilização penal dos agentes que disseminam e praticam essa forma de violência, especialmente no âmbito digital. Não são, porém, todas as propostas que observam que questões sobre raça e etnia, sexualidade e identidade de gênero são centrais para definir e para combater o discurso de ódio.

Já o Governo Federal anunciou, em fevereiro deste ano, a criação de um Grupo de Trabalho voltado para propor estratégias de combate ao extremismo e ao discurso de ódio nas redes. A iniciativa ainda não apresentou resultados ao público, mas passou a fazer, recentemente, consultas à sociedade civil organizada. Além disso, o Projeto de Lei 2630, popularmente conhecido como PL das Fake News, conta com forte apoio do governo. Mesmo que o texto do PL não trate expressamente o discurso de ódio, ele prevê que as plataformas terão que atuar de forma mais rápida para prevenir e reduzir práticas ilícitas que configurem crimes em algumas situações específicas, entre elas, o crime de racismo.

Questões sobre raça e etnia, sexualidade e identidade de gênero são centrais nesse debate

Com tantas iniciativas em debate, não é raro que a liberdade de expressão seja reivindicada como um verdadeiro freio a qualquer tipo de iniciativa que busque coibir expressões de ódio. Isso aparece, até mesmo, em relação a manifestações racistas, como na defesa de um salvo-conduto absoluto para comediantes que utilizam de discursos discriminatórios, expressa no Projeto de Lei 2703, apresentado pelo deputado federal Kim ­Kataguiri, e que isenta o ­stand-up ­comedy e demais manifestações artísticas de cunho humorístico de qualquer tipo de responsabilidade civil, penal ou administrativa. É preciso, no entanto, diferenciar esse tipo de posicionamento que faz uso retórico da expressão “liberdade de expressão” da garantia jurídica da liberdade de expressão consagrada pelo direito internacional dos direitos humanos.

É pacífico no texto e na interpretação dos principais tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que existe não apenas a possibilidade, mas o dever de proibir a apologia ao ódio racial e a incitação à discriminação, entre outras hipóteses que autorizam a restrição à liberdade de expressão. Trata-se, sim, de necessária restrição e responsabilização dos agentes, justamente para que mais pessoas – e, notadamente, os grupos historicamente vulnerabilizados – tenham garantida sua própria liberdade de expressão e dignidade, bem como outros direitos relacionados. Nesse sentido, o STF indicou (no HC n. 82424/RS e no RHC n. 134682/BA) a compatibilidade do rechaço ao discurso de ódio às previsões constitucionais brasileiras.

Dessa forma, o compromisso com o direito à liberdade de expressão não é sinônimo de um manto protetor de práticas violentas, mas com o respeito aos parâmetros para sua restrição legítima que têm sido reiterados por tribunais internacionais de direitos humanos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Dessa forma, é fundamental que o enfrentamento ao discurso de ódio seja pautado em previsões normativas precisas, que definam de forma clara as condutas não aceitas, bem como as possíveis consequências jurídicas. Além disso, os direitos que se busca proteger pelo combate ao discurso de ódio precisam estar garantidos pelo direito internacional dos direitos humanos – por exemplo, a proteção contra a discriminação por motivo de raça ou etnia – e as medidas aplicadas devem ser necessárias, adequadas e proporcionais ao objetivo buscado.

Além disso, a ARTIGO 19 pontua a necessidade de que essas estratégias sejam diversas, criativas e multissetoriais, considerando a natureza multifacetada do problema, que se enraíza em desigualdades de cunho estrutural – e, portanto, todas essas devem, antes de mais nada, tomar gênero, raça e etnia, sexualidade, território, religião, entre outros, como fatores centrais. Recomendamos às autoridades brasileiras que proponham e adotem medidas positivas para a promoção da liberdade de expressão, acompanhadas de formulações claras e precisas para o combate ao discurso de ódio e a violência nas redes. Estas devem ser pensadas também em eixos de educação em direitos humanos e midiática, políticas de comunicação, informação e capacitação sobre o tema, regulação econômica das plataformas digitais, incentivo à comunicação popular e comunitária, além da estruturação de mecanismos simples, rápidos e efetivos de investigação e responsabilização de casos de discursos de ódio e de proteção às vítimas. •


*Raquel da Cruz Lima, coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19; Maria Tranjan, coordenadora do  programa de Gênero, Raça e Diversidades da ARTIGO 19; Taynara Alves Lira, assessora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19.

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

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