Cultura
O lugar da memória
Uma campanha lançada pela Cinemateca Brasileira joga luz sobre o delicado tema dos filmes como um patrimônio a ser preservado e mostrado


Nos anos recentes, as imagens de um incêndio, na Vila Leopoldina, e de um prédio fechado, na Vila Mariana, com latas e mais latas de filmes lá dentro, sob risco, se tornaram a face mais visível da Cinemateca Brasileira.
Foi por meio do drama que a Cinemateca, ao longo de uma década agonizante, ganhou visibilidade na mídia e na sociedade. Mas, passado pouco mais de um ano da reabertura de sua sede – que permaneceu fechada de agosto de 2020 a maio de 2022 –, a instituição veio a público para dar a ver não apenas suas dificuldades, mas seus planos e sua razão de ser.
A campanha Memória em Movimento, feita a partir da iconografia de dez produções brasileiras, entre filmes e novelas, procura traduzir algo que tende a soar enigmático: o papel da preservação e do restauro na indústria audiovisual. “Lembra daquele filme com uma mulher que tinha dois maridos?”, pergunta o texto de uma das peças. “Então, tudo o que você lembra do nosso audiovisual, a Cinemateca Brasileira preserva.”
O pacote de boas notícias apresentado na quarta-feira 7 inclui o restauro e a modernização do prédio de tijolos aparentes, no antigo matadouro municipal, projetos de recuperação, catalogação e digitalização do acervo e mostras itinerantes por 12 cidades do Brasil.
O digital, ao invés de facilitar, tornou ainda mais complexa a tarefa de preservação
“Estamos perseguindo o objetivo de divulgar o que temos aqui. Com isso, esperamos acabar com a história, às vezes repetida, de que ninguém sabe o que tem no acervo da Cinemateca”, diz Gabriela Sousa de Queiroz, funcionária remanescente das várias crises e hoje diretora técnica da instituição.
O acervo contém mais de 40 mil títulos, além de documentos que ajudam a contar a história da produção de imagens no País. Durante o rescaldo do incêndio ocorrido no galpão da Vila Leopoldina, dois anos atrás, era comum que se ouvisse a pergunta “por que não se digitaliza isso tudo?”, como se ela carregasse em si a solução. Mas não é simples assim.
A preservação, trocando em miúdos, deve assegurar a conservação e o acesso a conteúdos e documentos audiovisuais produzidos a partir do final do século XIX, nos mais diversos suportes – como o nitrato, que é inflamável e exala mau cheiro, o acetato, que derrete, e o digital, que requer constantes atualizações.
Entre os projetos de preservação em curso estão o tratamento da coleção de filmes em nitrato, que compõem a coleção mais antiga do cinema brasileiro, com registros da primeira década do século XX, e a conservação, duplicação e difusão dos cinejornais do Canal 100, o maior acervo cinematográfico do futebol brasileiro.
Só este ano, a Cinemateca gastará 3,5 milhões de reais na compra de 300 rolos de filme. “O filme ainda é o suporte mais seguro, e com maior longevidade museológica”, diz Gabriela. “Em uma instituição como esta, marcada por tantas crises, me parece essencial garantir que os filmes fiquem em um suporte mais seguro.”
Película. Uma cópia restaurada de Quilombo (1984), de Cacá Diegues, será exibida na Mostra de Ouro Preto. Durval Discos (2002), de Anna Muylaert, até hoje não passou pela digitalização – Imagem: Acervo/Cacá Diegues e Acervo/Anna Muylaert
O tema do patrimônio audiovisual, complexo e sujeito a diferentes interpretações sobre o que e como preservar, foi, desde sempre, um rodapé na história das políticas públicas voltadas ao setor. Começam, porém, a surgir uns poucos sinais de uma mudança nessa sina.
O decreto presidencial publicado em janeiro deste ano, que trazia, entre outras medidas, a reinstituição do Ministério da Cultura, criou também a Diretoria de Preservação e Difusão Audiovisual. “Haver uma diretoria com essa denominação já é um bom sinal”, diz Gabriela.
O tema também esteve no centro de um encontro voltado ao que se chamou de reconstrução do audiovisual brasileiro na Mostra de Tiradentes, em Minas Gerais, no início do ano. O documento final do Fórum de Tiradentes prega a necessidade de se tirar a preservação do lugar de “apêndice” da cadeia produtiva do audiovisual.
A complexidade da preservação decorre da necessidade de altos investimentos financeiros, formação de mão de obra especializada e criação de espaços e condições para a manutenção do acervo. E a digitalização, que levou à migração do conteúdo para uma grande nuvem, deve ser entendida mais como um novo desafio do que como uma solução mágica.
A manutenção de arquivos digitais requer, como se lê no documento do Fórum de Tiradentes, “uma estrutura de conservação ativa que implica em infraestrutura tecnológica para o armazenamento de dados e a constante atualização dos formatos”. Além disso, a vastidão do conteúdo feito para a internet implica em uma rede de armazenamento hoje inexistente.
“O tamanho e a velocidade do big data são incompatíveis com a capacidade humana de manipulação do volume de material audiovisual hoje produzido”, diz Hernani Heffner, gerente da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), do Rio de Janeiro. “Para dar conta das necessidades da preservação teremos de contar com ferramentas da robótica e das webs 3.0 e 4.0. A preservação, no século XXI, tem de ser entendida como uma cadeia de valor autônoma, inclusive porque nunca foi tão grande o uso de imagens de arquivo.”
O novo Ministério da Cultura passou a incluir uma diretoria voltada à preservação
E o passado que se esvai não é apenas aquele longínquo. A política estruturada a partir da Lei do Audiovisual, em 1993, e da criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), em 2001, embora tenha garantido a produção de filmes, não garantiu nem sua difusão nem sua preservação.
Nomes-chave do cinema brasileiro no século XXI, como Anna Muylaert e Karim Aïnouz, viram parte sua produção tornar-se pouco acessível por não ter passado ainda por um processo de digitalização. Durval Discos (2002) e É Proibido Fumar (2009), de Anna, e Madame Satã (2002) e O Céu de Suely (2006), de Aïnouz, são exemplos de obras que não podem ser vistas no streaming por ainda terem cópias apenas em película.
Foi, inclusive, a descoberta dessa realidade que levou Raquel Hallak a fazer a Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP), que tem os filmes de patrimônio como um de seus eixos. “Em 1998, quando criei a Mostra de Tiradentes, quase não havia filmes novos no Brasil, mas havia um acervo enorme a ser exibido. Só que quando fui tentar fazer isso, tive uma dificuldade imensa para encontrar cópias dos filmes”, diz.
Às vésperas da abertura da 18ª edição da CineOP – na quarta-feira 21, com a presença da ministra Margareth Menezes –, Raquel olha para trás no tempo e intui que, enfim, a percepção em torno do tema da preservação e da memória mudou. E ela não está sozinha nessa percepção. •
Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O lugar da memória ‘
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