Justiça
Sem-terra na mira
Grileiros invadem um assentamento regularizado pelo Incra e destroem milhares de hectares de mata


Chegaram armados, com um mapa em mãos e documentos falsos. Se a gente não tivesse muita convicção sobre o que é nosso, teríamos ficado intimidados”, conta a agente de saúde Alessandra Siqueira da Costa, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e moradora do Assentamento 12 de Outubro, no município de Cláudia, em Mato Grosso. A área cercada pelo agronegócio, distante 90 quilômetros de Sinop, está há anos sob ameaça de grileiros ligados aos empresários da região. “Agora, eles estão por ali, ao redor do assentamento. A gente evita contato porque não quer conflito, mas também não deixamos eles avançarem sobre a nossa terra”, explica a camponesa, que trabalha também na cooperativa do movimento.
Alessandra participou da luta pela regularização fundiária do assentamento, concluída pelo Incra em 2012, e ajudou na criação da cooperativa que hoje representa a principal forma de comercialização dos alimentos produzidos para a subsistência das 170 famílias assentadas. Recentemente, quatro homens armados tentaram invadir o lote pertencente ao tio dela. “Eles fazem uma pesquisa e chegam bem-informados. A gente sabe que esses documentos que eles mostram são falsos. Neste caso, meu tio conseguiu ganhar deles na palavra, argumentou que a terra era dele e mostrou a documentação. Mas eles têm muitos jeitos de invadir, é gente profissional mesmo”, denuncia.
Há duas semanas, um grupo de grileiros avançou sobre a área social do assentamento, destinada aos equipamentos de uso comum da comunidade, como a Escola Estadual Florestan Fernandes, o posto de saúde, as igrejas e os espaços de trabalho da cooperativa. Essa nova investida se dá ao mesmo tempo que avança na Câmara a CPI do MST, proposta pela bancada ruralista, com o alegado objetivo de investigar as ações do movimento. Mas quem invade terras produtivas são os grileiros, não os sem-terra, denunciam os assentados do município de Cláudia.
Esquema ilegal. Os grileiros vendem lotes para sítios de veraneio – Imagem: Redes sociais
Quando o assentamento foi regularizado pelo Incra como um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, cerca de 80% da área foi destinada à preservação ambiental. Isso significa que os moradores até podem explorar o uso da castanha-do-brasil, mas sem desmatar o terreno. Logo, não cabe a eles proteger essa área, e sim aos órgãos públicos como o próprio Incra, o Ibama e as polícias. “Com o governo Bolsonaro, a reforma agrária foi totalmente paralisada. O pessoal ligado aos empresários da região se aproveitou da situação para invadir toda a área da reserva”, denuncia Idalice Rodrigues Nunes, da coordenação nacional do MST. Como se trata de uma comunidade pequena, a cidade tem pouco mais de 11 mil habitantes, dos quais apenas 7 mil estão na área urbana, esses grileiros são conhecidos na região. “Nem sempre é na violência, às vezes eles tentam conversar, propor sociedade na produção de algum alimento. Ou até mesmo convencer que eles são os donos da terra. Tem uma disputa de narrativa também”, conta.
Segundo a dirigente, há cerca de quatro anos começaram os primeiros incêndios. “Na época, a gente denunciou, os Bombeiros e o Ibama vieram e disseram que tinha todas as características de um incêndio criminoso. Mas os culpados nunca foram pegos.” A partir disso, os grileiros invadiram a reserva e se consolidaram. Primeiro, eles cortam as árvores de madeira de lei, para comércio ilegal. Na sequência, cercam lotes, preparam a terra e começam a vender como se fosse um loteamento regularizado para sítios de lazer. “A gente sabe que quem invadiu não é família pobre, tem um monte de mansão. Como fica perto do lago, tem muita especulação imobiliária para o turismo.” E acrescenta que, em Mato Grosso, praticamente tudo está ligado ao agronegócio. “Não é só a produção de commodities, esses empresários também são donos de imobiliárias, de bancos, de empresas de insumo, são sócios de multinacionais, é um cartel mesmo.”
Como não houve fiscalização do Poder Público, a invasão avançou até ocupar toda a área de reserva legal. Dados do MapBiomas mostram a devastação ao longo dos anos. Em 2001, a área de floresta era de 3,7 mil hectares. Em 2018, cerca de mil hectares foram desmatados. Em 2019, a área já havia sido reduzida pela metade. Em 2020, restavam apenas 1,6 mil hectares de floresta. “O que a gente pede é a reintegração de posse, porque nós queremos replantar as castanheiras que eles cortaram e recuperar o bioma da região”, explica Idalice Nunes. “Esses grupos são de grileiros profissionais. Isso ainda acontece muito aqui. Eles chegam, botam fogo e depois seguem derrubando as árvores. Aí fazem propaganda e vêm outras pessoas, muitas vezes até famílias enganadas, que não têm nada a ver com o assunto. Mas a maioria é de profissionais mesmo. O objetivo deles é grilar e vender os lotes.”
O superintendente regional do Incra admite o problema e promete fazer em breve a reintegração de posse
O atual superintendente regional do Incra de Mato Grosso, Edtânio Santos de Oliveira, garante que o órgão está ciente da situação e começou a trabalhar para recuperar a área perdida. “Logo que recebemos a denúncia desse novo processo de invasão, imediatamente enviamos policiais militares para fazer o levantamento e acionamos as autoridades superiores para todos os procedimentos cabíveis para a reintegração de posse, tanto da área de reserva legal quanto da área comunitária do assentamento.” Segundo ele, uma diligência será feita nesta semana para avaliar o nível do desmatamento causado pelos invasores e dar entrada ao processo de reintegração de posse.
Oliveira queixa-se, porém, das dificuldades financeiras e da falta de estrutura do Incra. “Aqui em Mato Grosso, o grande processo de grilagem dos últimos anos deu-se principalmente pelo descaso do governo anterior.” Em 2019, o então presidente Jair Bolsonaro estabeleceu uma portaria para suspender a criação de assentamentos. “Isso afetou diretamente a reforma agrária, e muitas áreas começaram a ser invadidas.” O superintendente revela que, além do Assentamento 12 de Outubro, outros também passaram pelos mesmos conflitos nos últimos anos. “Já começamos os processos de reintegração de posse no Assentamento Antônio Conselheiro, em Tangará, e em outros assentamentos, em Bom Jesus do Araguaia, estamos tomando as providências contra todo e qualquer tipo de invasão dessas áreas.”
CPI do MST. Na Câmara, os ruralistas se encarregam de criminalizar os sem-terra – Imagem: Hegon Corrêa/GOVGO
A presidente da cooperativa, Ana Maria dos Reis, explica que a boa relação dos assentados com a comunidade local foi fundamental para ajudar a barrar a invasão. “Quando tentaram invadir a área social, houve muita denúncia da sociedade civil, do pessoal da universidade. Porque a gente cria relação até de amizade, né? Cada pessoa que frequenta a feira passa a enxergar as famílias assentadas com outros olhos.” Hoje, os camponeses desenvolvem um projeto em parceria com a Universidade do Estado de Mato Grosso de venda dos alimentos produzidos pela cooperativa através de um site. “A gente produz mandioca, leite, ovos, hortaliças e legumes.”
A cooperativa tem planos de expandir sua produção e criar uma agroindústria de castanha-do-pará. Para esse projeto já existe uma parceria com a Universidade Federal de Mato Grosso. O professor Calixto Crispim dos Reis, que ministra as disciplinas de Inglês e Saberes do Campo na Escola Estadual Florestan Fernandes, explica que a área ameaçada está basicamente vazia porque ela foi destinada a essa nova agroindústria que está para ser construída. “Como ainda não tem nenhuma construção, se acharam no direito de tentar invadir.” Para evitar invasões, a comunidade fez bloqueios e guarda 24 horas por dia, por conta própria, até que o Incra tome as rédeas do processo.
A escola atende alunos do assentamento e do município de Cláudia, do Básico ao Ensino Médio. A disciplina Saberes do Campo foi implementada em 2019, com a reforma do Ensino Médio. “É uma proposta curricular de trabalhar com agroecologia. Isso envolve fazer a agricultura agroecológica orgânica, a gente aprende com a cooperativa e replica esses saberes dentro da escola.” Segundo o professor, os estudantes aprendem desde cedo a cuidar e preparar a terra para obter uma produção saudável e de baixo impacto para a natureza. “Eles aprendem desde a produção de insumos, de adubos, até as formas de plantar corretamente, colher dentro do tempo certo, e todas as técnicas de cobertura do solo. Isso é também uma forma de fazer trabalho de base e ensinar o valor da terra.” •
Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem-terra na mira’
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