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Os cowboys reagem

Os ruralistas unem-se pelo ‘marco temporal’ na demarcação de terras e por uma ferrovia em área indígena

Os cowboys reagem
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As etnias pressionam o STF para rejeitar a tese do “marco temporal”, ideia tirada da gaveta pela bancada ruralista e posta a tramitar em regime de urgência – Imagem: FPA e Joédson Alves/ABR
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O agronegócio é uma máquina de fazer dinheiro. No ano passado, garantiu 69 bilhões de dólares de saldo comercial ao País. De cada 4 reais em riquezas produzidas pela economia, 1 real sai do campo. É o lado reluzente da história. Há outro. Do 1,9 milhão de contribuintes do Imposto Territorial Rural, o ITR, que é o IPTU do campo, cada um desembolsou, em 2022, em média, míseros 1.358 reais pelos grandes nacos de Brasil que dominam. A força da agropecuária não chega à enxada. Dos 97 milhões de trabalhadores, só 8% estão no setor. Que paga os piores salários: 1,8 mil ­reais em média, mil reais abaixo da média geral dos demais segmentos. E há fazendeiros que nem isso pagam, vide as rotineiras descobertas de camponeses submetidos a condições análogas à escravidão.

Os ruralistas não estão, porém, satisfeitos com essa exploração digna das capitanias hereditárias. Querem frear a reivindicação de terra por indígenas. O Supremo Tribunal Federal marcou para 7 de junho o julgamento de um processo capaz de realizar, ou de matar, esse sonho. Uma semana antes, o STF oferecerá um aperitivo sobre de que lado ficará entre o agronegócio e as causas indígenas, ao decidir sobre uma ação a respeito de uma ferrovia, a Ferrogrão, planejada para passar em um parque nacional no Pará, o Jamanxim. E o que fez a bancada ruralista no Congresso, diante dos passos da Corte a respeito do chamado “marco temporal”? Saca do coldre uma lei para neutralizar o julgamento.

Marco temporal” é uma tese inventada por fazendeiros e seus juristas, segundo a qual, para reivindicar uma área, os indígenas deveriam provar que a ocupavam em outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese chegou ao Supremo em 2016, em consequência de uma queda de braço entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto do Meio Ambiente do estado de Santa Catarina, o IMA. Em 2009, o IMA foi à Justiça com um pedido de reintegração de posse contra integrantes da etnia Xokleng que haviam ocupado parte de uma reserva ambiental estadual, a Sassafrás. A Funai saiu em defesa dos ocupantes. Foi derrotada na primeira e na segunda instância judicial e recorreu ao Supremo.

Em 2019, o STF decidiu que o julgamento balizará todas as disputas do gênero no País, não ficará restrito ao caso de Santa Catarina. No último dia 9 de maio, a presidente do tribunal, Rosa ­Weber, marcou a data para o plenário apreciar a causa: 7 de junho. Uma retomada, na verdade. O início deu-se em 2021. Naquele momento, o relator, Edson Fachin, votou a favor da Funai, dos Xokleng e contra o “marco temporal”. Em seguida, Kassio Nunes Marques, um dos dois indicados de Jair Bolsonaro para a Corte, fez o oposto.

A deliberação foi suspensa a pedido de ­Alexandre de Moraes, que queria tempo para pensar. O Supremo prepara-se para muita pressão indígena do lado de fora do prédio. Nos últimos dias, a segurança do tribunal reuniu-se com a PM e a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. A tendência é de que a Praça dos Três Poderes esteja fechada ao público no dia.

Uma amostra do estado de ânimo em torno do tema foi vista na quarta-feira 24. Os deputados carimbaram como “urgente” uma lei escrita pela bancada ruralista para legalizar o “marco temporal”. Com essa lei, a ser votada a qualquer momento na Câmara, tentará neutralizar o julgamento do Supremo. “A caneta tem assassinado o nosso direito”, afirmou a deputada indígena Célia Xakriabá, do PSOL mineiro, durante a sessão. “É um projeto anticivilizatório de Brasil.” Juliana Cardoso, do PT paulista, emendou: “Assassinos do nosso povo indígena. Vocês são assassinos do nosso povo”. “Assassina é tu, imbecil”, retrucou Alceu Moreira, do MDB gaúcho.

O projeto “urgente” foi apresentado em 2007 por um deputado de Mato Grosso, Homero Pereira, que foi vice-presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária. Morto em 2013, Pereira propunha que a demarcação se desse por lei, ou seja, via Congresso, não por decreto presidencial, como hoje. O projeto mudou em 2021, quando o Supremo começava a examinar o caso de Santa Catarina. A bancada ruralista desistiu de invocar as análises para o Parlamento. Optou por botar na legislação a ideia de “marco temporal” e impor a necessidade de indenizar os ocupantes de uma terra declarada como indígena. A indenização está prevista no artigo 231 da Constituição, para o caso de despesas feitas “de boa-fé” pelos ocupantes. Ao impor um custo, os ruralistas sabem que ficará mais difícil demarcar.

A feição atual do projeto coube ao ­deputado Arthur Maia, do União Brasil da Bahia. Ele é um dos 81 congressistas ruralistas, senadores incluídos, conforme o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. A Frente Parlamentar da Agropecuária é ainda maior: 347 dos 513 parlamentares. Não por acaso, o carimbo de “urgente” no projeto foi aprovado com folga na Câmara: 324 a 131 votos. Entre os 2,5 milhões de reais em bens declarados à Justiça Eleitoral em 2022, Maia tinha 200 mil em cavalos, 280 mil em vacas, além de terras e firmas agrícolas.

Para neutralizar o STF, a Câmara aprovou a urgência do projeto que dificulta a delimitação de territórios

Lira, o presidente da Câmara, é outro ruralista. No patrimônio de 5,9 milhões de reais declarado, havia fazendas e uma empresa agropecuária. Em reunião com alguns deputados e assessores antes da sessão que aprovou a urgência no projeto, Lira disse tratar-se de um sinal ao STF de que os ruralistas não vão assistir inertes ao julgamento a caminho. Foi ainda mais explícito, conforme uma testemunha, ao comentar a desconfiguração do desenho proposto por Luiz Inácio Lula da Silva em 1o de janeiro para a Esplanada dos Ministérios. Por esse desenho, o Ministério dos Povos Indígenas teria a penúltima palavra, aquela antes do decreto presidencial, sobre demarcação. O Congresso quer tirar essa atribuição da pasta e entregá-la à da Justiça. E busca esvaziar o Ministério do Meio Ambiente, ao retirar do seu âmbito o controle do Cadastro Ambiental Rural e da política de recursos hídricos. Mudanças, comentou Lira, para mostrar quem manda.

Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, manifestou publicamente decepção com Lula diante do que considera inércia do governo em relação ao possível esvaziamento de sua pasta (esvaziamento que será confirmado ou não em breve, quando da votação de uma Medida Provisória). Sobre o “marco temporal”, a ministra havia feito um apelo ao STF, em 10 de maio, no Senado: “Quantas teses jurídicas inconstitucionais o Supremo Tribunal Federal precisará rechaçar para que a sociedade brasileira entenda que o direito dos povos indígenas não começa em 1988, é um direito originário?”

Santuário ameaçado. A ferrovia vai cruzar o Parque Jamanxim, no Pará – Imagem: iStockphoto

A volta da demarcação, inexistente no governo Bolsonaro, foi compromisso eleitoral de Lula. E tem apelo internacional. Criar reserva indígena não é só um ato de justiça histórica, inclui razões ambientais, como declarou o presidente ao se despedir de uma reunião do G-7, no Japão, em 21 de maio. “Os indígenas podem ser efetivamente os grandes guardiães da floresta.” Um estudo de 2022 do Mapbiomas, rede de ONGs e pesquisadores, quantificou: 20% da vegetação nativa brasileira está em terras indígenas e só 1% do desmatamento nacional acumulado de 1985 a 2020 ocorreu nelas.

Em abril, Lula assinou seis decretos de demarcação, ao participar de um ato indígena em Brasília, o Acampamento Terra Livre. Havia herdado o governo com 14 áreas à espera de aval. Segundo fontes da Funai, há 12 portarias declaratórias de terras indígenas (aquela penúltima etapa, hoje a cargo do Ministério dos Povos Indígenas) à espera de assinatura, 120 grupos técnicos a estudar reivindicações apresentadas por indígenas e mais de 400 outras reivindicações na fila. No limite, poderiam ser criadas mais 540 reservas. Aquelas existentes ocupam 13,8% do País, segundo o Mapbiomas. Não é difícil entender a tensão entre indígenas, população de 1,6 milhão de indivíduos, conforme o Censo de 2022 do IBGE, e os ruralistas.

O governo Temer atropelou a Constituição para colocar em marcha o projeto da Ferrogrão

Também em abril, a Funai finalizou o primeiro relatório, no governo Lula, sobre uma reivindicação de terra e a conclusão é a favor da demarcação. É um caso na cidade de Itaituba, no Pará, a envolver a etnia Munduruku. Uma região e um povo metidos em outro conflito a desaguar no Supremo. O tribunal marcou para 31 de maio o julgamento de uma ação movida em 2020 pelo PSOL contra a construção de uma ferrovia, batizada de Ferrogrão. A obra foi idealizada por cinco tradings (quatro estrangeiras), companhias gigantes que dominam o comércio mundial de soja e outros grãos. Ela tem cerca de 930 quilômetros e liga Sinop, em Mato Grosso, a Itaituba. Seu custo é estimado em 9 bilhões de reais. O objetivo das tradings é fugir dos portos do Sul do ­País e exportar a partir do Pará, mas os trilhos atravessariam o Parque Jamanxim. A construção da ferrovia também amea­ça ­os Mundurukus que vivem no entorno.

Para o projeto ir adiante, o governo Temer violou a Constituição e baixou uma Medida Provisória em 2016 que excluía do parque a área necessária à Ferrogrão. Contra essa violação, o PSOL recorreu ao Supremo. Em março de 2021, Moraes deu uma liminar a favor da ação e paralisou o trâmite da obra.

O ato impugnado não é o único problema. O governo jamais fez consulta prévia sobre a Ferrogrão aos povos indígenas impactados pelo projeto, medida exigida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Em março deste ano, a ativista ambiental sueca Greta Thunberg foi presa na Noruega por participar de um protesto contra o governo local por este ter desobedecido a uma decisão da Suprema Corte local exatamente sobre a inexistência de consulta prévia a um povo indígena, os ­Sami, antes da instalação de um parque eólico na região habitada por essa etnia. Aqui, a ministra Sônia Guajajara pediu à Advocacia-Geral da União para rever a posição do governo sobre a ­Ferrogrão no Supremo. A AGU de Bolsonaro era a favor. E a de Lula? Fará o que neste caso e em relação ao “marco temporal”? A tendência é ficar do lado dos indígenas. •

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

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