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Sobre o PL das Fake News

A liberdade que a democracia constitucional demanda e consagra assenta no pressuposto da tolerância limitada

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O PL das Fakes News, em tramitação na Câmara dos Deputados desde 2020, após ser aprovado no Senado, voltou à pauta depois dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, que culminaram com a depredação dos prédios dos Poderes da República e dos trágicos episódios de violência nas escolas em todo o País. A ideia é instituir uma nova lei no Brasil, a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. A discussão divide os congressistas a partir de um falso dilema: defesa do combate à desinformação e ao discurso de ódio versus liberdade de expressão.

A realpolitik informa, contudo, tratar-se de mais um teste de resistência do bolsonarismo, que dá sustentação parlamentar à oposição ferrenha à proposta, apoiada, por outro lado, pelo governo Lula. Não é de hoje que o bolsonarismo se alimenta do debate mal resolvido sobre liberdade de expressão. Na Presidência, Jair Bolsonaro atacou jornalistas, censurou dados públicos, perseguiu críticos e opositores e investiu pesado nas plataformas digitais para proliferar mentiras, teorias conspiratórias, violência e ódio, impondo a bandeira da liberdade como falácia. Na disputa eleitoral de que saiu derrotado, em 2022, adicionou um quarto elemento ao lema “Deus, Pátria e Família”, que vinha entoando desde 2018: Liberdade. Seus aliados persistem porque a liberdade de expressão tornou-se o refúgio, em face das evidências de suas intenções e atos antidemocráticos: os bolsonaristas bradam aos democratas que não passam, eles, de ditadores porque pretendem impedir que digam o que quiserem, quando e como quiserem.

A liberdade que a democracia constitucional demanda e consagra, entretanto, assenta no pressuposto da tolerância limitada. A proteção da ­liberdade de expressão não se estende a manifestações violentas em razão do estilo de vida, crenças e convicções de um indivíduo ou de um grupo. Não abraça a discriminação de caráter religioso, racial, sexual, étnico e de classe reconhecida em discursos racistas, xenofóbicos, homofóbicos e misóginos. E ainda que se possa argumentar o direito de ser estúpido, ridículo, delirante, de expressar livremente opiniões baseadas em “um sistema de crenças muito próprias, muito singulares que não têm aderência na realidade”, como reconheceu ao deputado Deltan Dallagnol ­(Podemos/PR)­

o atual ministro da Justiça, Flávio ­Dino, o fato é que esse não é desiderato da consagração constitucional da liberdade de expressão. Trata-se, na melhor das hipóteses, de um efeito colateral indesejável, eventualmente passível de coibição, da necessidade de construção e manutenção de um ambiente que permita o esclarecimento recíproco dos cidadãos, a deliberação pública, esta, sim, constitutiva das democracias.

O PL das Fake News é sobre isso. É sobre democracia, único regime que garante a liberdade. Estamos, portanto, no campo de discussões sobre as condições de possibilidade do regime democrático. E a democracia não pode admitir que a defesa da liberdade de expressão dê guarida à distorção do processo de formação da opinião pública ou, dito de outra forma, da possibilidade vitualmente igualitária de que a ­variedade de grupos de interesse da sociedade influencie o processo decisório. Hannah Arendt alertou para o fato de que a mentira generalizada, a manipulação do sentido de realidade dos indivíduos, gera um ambiente de crescente desconfiança e descrença que debilita a autonomia individual, a partir da qual opera a democracia liberal.

A desinformação afeta, com decorrência, as possibilidades de participação efetiva do processo político, da deliberação pública, mesmo em face de observações tradicionais acerca do regime democrático que consideram que o poder é partilhado entre grupos governamentais e interesses externos que exercem pressão e influência sobre eles. A defesa da liberdade no bolsonarismo, que com frequência se vincula a críticas a decisões judiciais que venham a coibir investidas violentas de apoiadores do ex-presidente às instituições democráticas ou ao Supremo Tribunal Federal, no caso do PL das Fake News, encobre ainda a defesa dos interesses das Big Techs, as grandes empresas de tecnologia que oferecem resistência a movimentos análogos de regulamentação de serviços digitais em vários países. •

Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sobre o PL das Fake News’

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