Justiça
A lei dos senhores
Como a Justiça perpetua a escravidão moderna


Em vias de se relembrar a data da abolição da escravatura no Brasil, resta-nos refletir se de fato abolimos na contemporaneidade este crime considerado pelo Direito Internacional como uma norma jus cogens, em relação à qual, além de constituir obrigação erga omnes a todas as nações, com implicação de proibição absoluta de sua prática, independentemente de previsão convencional, não existe possibilidade de derrogação ou relativização.
Para tanto, iremos analisar dois casos recentes no Pará, com repercussão nacional. O primeiro foi flagrado em janeiro de 2021, por fiscalização do Grupo Móvel na “Fazenda Terra Roxa”, no sul do estado, onde foram resgatados três trabalhadores submetidos a situação análoga à de escravos, subjugados a condições de trabalho indignas, a jornadas ininterruptas e expostos ao sol e agrotóxicos, sem qualquer equipamento de proteção. Os alojamentos eram de terra batida, sem paredes e cobertos apenas por lonas, deixando as vítimas expostas a ataques de animais e às intempéries naturais da Região Amazônica. Não recebiam alimentação adequada e a água consumida era a mesma do córrego que servia aos animais. Os salários eram pagos em parcelas ínfimas e esporádicas.
Ao tomar conhecimento da operação de fiscalização conduzida por auditores fiscais do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal, os proprietários ordenaram a expulsão a tiros dos trabalhadores. No local foram encontrados projéteis calibre 22 e os barracões, demolidos e queimados. Mesmo assim, foram resgatados três trabalhadores da fazenda e formalizada a Ação Civil Pública com base no conceito de trabalho análogo ao de escravo, sob os moldes do artigo 149 do Código Penal, em face dos proprietários da Terra Roxa, que, por sua vez, eram reincidentes na prática criminosa.
Em primeira instância, a decisão proferida pela Vara do Trabalho de Redenção reconheceu a existência de trabalho escravo contemporâneo e condenou os réus a indenizar os trabalhadores em danos morais individuais homogêneos, além das verbas rescisórias. Todavia, em sede de recurso interposto pelos proprietários da fazenda, o acórdão da 4ª Turma do TRT-8 reformou integralmente a sentença, por entender que não havia restrição da liberdade de ir e vir e que os trabalhadores eram alojados eventualmente nos barracões, por isso, desconstituíram o reconhecimento de condições degradantes de trabalho. Soa como um esforço argumentativo para não punir os escravocratas da atualidade no Judiciário Trabalhista, mesmo contrariando o relatório do Grupo Móvel nacional de fiscalização de trabalho escravo e o empenho de toda a equipe de agentes que participou da operação de resgate.
Dois casos distintos no Pará ilustram o viés ideológico do Judiciário
Em contraste, o segundo caso está relacionado com a condenação de cinco líderes da Comunidade Lucas, no município de Baião, em março de 2023, pela Justiça Federal, pela prática do crime de redução à condição análoga à de escravo e outros correlatos, contra 67 vítimas, incluindo crianças e adolescentes, durante mais de 20 anos, entre 1997 e 2022.
A investigação do caso constatou que os trabalhadores eram submetidos a jornadas exaustivas, condições degradantes e constantes ameaças de violência física e psicológica. As reportagens sobre o caso revelam que os líderes da comunidade se utilizavam de argumentos religiosos para justificar as explorações, uma vez que, inicialmente, a comunidade foi construída com o intuito de ser uma comuna familiar, funcionando num regime de economia solidária pela produção e venda de alimentos. Até que, movidos pelo intuito econômico, os integrantes passaram a viver sob penúria, forçados a trabalhar sem nada receber, envolvendo todos os grupos familiares.
Diante desse cenário, a condenação implicou o total de 29 anos e 9 meses de prisão, mais multa de cerca de 380 mil reais, a quatro réus. Ao quinto atribui-se reclusão de 9 anos e 3 meses e multa de 1,4 mil reais.
O que há de destoante nos dois casos, ambos ocorridos e julgados recentemente no Pará?
Chama atenção a discrepância entre as condenações, que nos parece evidenciar um problema ideológico da Justiça ao decidir sobre os casos que envolvam a escravidão contemporânea. No julgamento em segunda instância do caso Fazenda Terra Roxa, onde os acionados são proprietários rurais e pertencentes à elite econômica, os argumentos da decisão proferida pela 4ª Turma do TRT-8 relativizaram as condições degradantes de trabalho, comprovadas nos autos processuais, e as naturalizou como se inerentes ao trabalho rural, por isso não passíveis de responsabilização. Sob a argumentação técnica do julgado, parece-nos transparecer uma justificativa econômica para o trabalho degradante.
No outro caso, os fatos da Comunidade Lucas geraram a maior condenação pelo crime de trabalho análogo ao de escravo até então verificado nesse estado. Sem que se desconsidere a gravidade das denúncias, deve ser levado em conta quem naquele episódio foi julgado. Os acusados na Comunidade Lucas eram oriundos da mesma classe dos explorados, antes de se tornarem exploradores, portanto, não eram parte da elite, nem brancos, de forma que o reconhecimento do crime e a consequente punição retoma o estereótipo do “criminoso”, enxergado apenas fora das classes dominantes.
Tal como analisou Daniella Muller (2020), a relação entre o intérprete da norma e a vasta carga simbólica presente no tema “escravidão”, acaba por ser demonstrada nas decisões judiciais por meio dos discursos e teses que negam a prática criminosa sob suposto argumento técnico. Indo além, a tarefa interpretativa dos julgadores parte da visão de mundo que eles carregam, o que nos leva a inquirir qual a classe e cor de quem julga e qual tem sido a eficiência ética do discurso dos Direitos Humanos nas práticas das instituições jurídicas. De fato, seria ela universal?
Assim, os argumentos que desqualificam as provas produzidas pelas fiscalizações, o pagamento de salários, ainda que ínfimos, a atribuição das condições de trabalho como típicas da região rural, a relativização do bem jurídico ofendido e a associação dessas violações a meros descumprimentos das normas de segurança do trabalho são falácias construídas para dificultar a justa aplicação da norma penal. •
*Valena Jacob é doutora em Direito pela Universidade Federal do Pará e diretora-geral do Instituto de Ciências Jurídicas da Ufpa. Camila Lourinho Bouth é mestranda em Direitos Humanos – PPGD/Ufpa e integrante da Clínica de Trabalho Escravo da Ufpa. Pollyana Esteves Soares é mestranda pelo PPGD/Ufpa e residente da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da Ufpa.
Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A lei dos senhores’
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