Economia
Voo de volta
Após quatro anos de desabalada fuga, o investimento estrangeiro começa a regressar ao País


Vestígios das inúmeras multinacionais que abandonaram em massa o País no governo Bolsonaro por falta de perspectivas de crescimento econômico, problema agravado pela pandemia, ainda são visíveis, do Oiapoque ao Chuí, mas novos investimentos industriais estrangeiros começam a chegar. Em duas semanas, ao menos quatro empresas globais anunciaram ou confirmaram aportes de recursos no Brasil e o governo aposta na possibilidade de uma série de iniciativas semelhantes, estimuladas pelas novas perspectivas econômicas e políticas.
O empenho do presidente Lula em trazer recursos externos e seu compromisso com o avanço da indústria, a sustentabilidade ambiental, a ampliação do mercado consumidor e a segurança jurídica e institucional explicam a mudança de tendência, apontam economistas. A japonesa Toyota, a montadora chinesa GWM, a indústria suíça de alimentos Nestlé e a empresa chinesa de e-commerce Shein divulgaram investimentos no total de 15 bilhões de reais, entre novas linhas e projetos greenfield, isto é, novas fábricas. A chegada de dinheiro contrasta com o desinvestimento acelerado desde o começo do governo anterior, antes e depois da pandemia. A revoada para fora do País, noticiada com destaque nos últimos anos, incluiu as gigantes Ford, Mercedes-Benz, Audi, Sony, Roche, Ely Lilly, Nike, Nikon, Walmart e as empresas Glovo, Lime, Kiabi, Wendy’s, Hooters, Fnac, Brasil Kirin, Häagen-Dazs, RR Donnelley, Lush Cosméticos e Kiehl’s, entre outras.
Toyota, GWM, Nestlé e Shein anunciaram aportes de cerca de 15 bilhões de reais
A Toyota investirá 1,7 bilhão de reais em uma linha de produção de veículos híbridos em Sorocaba, no interior de São Paulo. A GWM confirmou investimentos de 10 bilhões para a produção de carros com tecnologia semelhante em Iracemápolis, também no interior paulista, na antiga fábrica da Mercedes-Benz. A Nestlé fará um aporte de 2,5 bilhões nas suas fábricas no Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo, e na construção de um novo complexo industrial da Nestlé Purina, em Vargeão, Santa Catarina. A Shein anunciou investimentos de 750 milhões de dólares em produção têxtil na Coteminas, em Pará de Minas, e na Santanense, em Itaúna, localizadas no estado de Minas Gerais. As fábricas são controladas pela Springs Global, dirigida por Josué Gomes da Silva, presidente da Fiesp e foram escolhidas pela Shein, varejista global de vestuário, para dar conta do compromisso assumido com o Ministério da Fazenda de produzir, no Brasil, no prazo de quatro anos, 85% daquilo que hoje o grupo exporta da China.
Segundo o economista Uallace Moreira, secretário de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, as decisões de investimento da Toyota, da GWM e da Nestlé foram estimuladas pela proposta de industrialização do governo, com uma nova dimensão de retomada do fortalecimento e adensamento de cadeias produtivas mais intensivas em tecnologia e em uma perspectiva de sustentabilidade. “Hoje há no mundo uma janela de oportunidades e mudanças com a indústria 4.0 e a transição energética, que dão condições ao Brasil de ser um player relevante”, descreve Moreira. O fato de o País ter um governo que assume como uma das principais pautas a neoindustrialização, diz, dá indicações para o setor industrial nacional e estrangeiro de que há boas perspectivas futuras.
O investimento da Shein resulta de uma decisão do governo de restringir importações, principalmente de itens de vestuário, internalizadas como se fossem transações entre pessoas físicas, situação que possibilita a compra sem pagamento de imposto até o limite de 250 reais por item. Quando o Ministério da Fazenda fechou essa brecha da legislação, a Shein procurou o governo e empresas como a Renner, Riachuelo, Magazine Luiza, Coteminas e Santanense, entre outras, em busca de alternativas para a produção local. O governo desistiu do bloqueio das transações, mas não da fiscalização da fuga de tributação e a Shein, diante da postura firme da Receita Federal, reafirmou a decisão de realizar “investimentos para aumentar a competitividade de fabricantes têxteis brasileiras, por meio de tecnologias e treinamento para que as fábricas possam modernizar seus modelos de produção”, segundo comunicado assinado pelo CEO da companhia, Yuning Liu, e pelo diretor para a América Latina, Marcelo Claure.
Nos casos da Toyota e da GWM, os projetos estão vinculados ao processo de descarbonização, em rotas tecnológicas a serem exploradas no processo de industrialização do setor automotivo. A Nestlé produz bens de consumo não duráveis, mas tem investimento relevante em pesquisa e desenvolvimento no Brasil, onde mantém um centro para esta finalidade. Esses investimentos fortalecem o ecossistema de P&D no País, sublinha Moreira.
Parceria. A Coteminas, de Gomes da Silva, irá suprir a demanda da Shein – Imagem: Redes sociais
A política de industrialização tem como elemento fundamental fortalecer a estrutura produtiva para reforçar os setores que agregam mais valor por serem mais complexos tecnologicamente e gerarem empregos com maior nível de qualificação e remuneração, o que resulta em fortalecimento do mercado interno e melhora da distribuição de renda. Resultado crucial em um país no qual sete em cada dez empregos gerados têm remuneração de até dois salários mínimos, além de que o avanço da indústria repercute no setor de serviços e no comércio, com aumento da demanda de emprego com maior renda e qualificação. “Hoje, aproximadamente, 65% do PIB brasileiro depende do mercado interno. Se o País gerar mais emprego e renda com maior nível de qualificação e salário, fortalece o nosso mercado interno e dinamiza o crescimento econômico”, sublinha o secretário do MDIC.
Na quinta-feira 20, no mesmo momento em que o ministro Fernando Haddad anunciava à imprensa as diretrizes para solucionar o problema da tributação do e-commerce estrangeiro, representantes de dezenas de grandes empresas de market place, couriers e os Correios tiveram uma primeira reunião com técnicos do governo para discussão de um protocolo de conformidade para o setor. Segundo revelou a esta revista o representante de uma empresa presente ao encontro, quase todos os participantes mostraram grande interesse em aderir ao protocolo. O principal ponto é que os sites deverão apresentar de modo transparente o valor da compra, que inclui não apenas o montante líquido da venda, mas os tributos incluídos. As informações relacionadas ao exportador, ao intermediário, ao adquirente no Brasil, com a identificação de cada um deles, terão de ser fornecidas à Receita Federal antes da chegada da mercadoria, para o tratamento dessa informação e a análise de risco do processo de importação.
“Há no mundo uma janela de oportunidades com a indústria 4.0 e a transição energética”, diz Uallace Moreira, do Ministério do Desenvolvimento
A adesão maciça das empresas nacionais e estrangeiras participantes do e-commerce no Brasil ao protocolo e a decisão da Shein de substituir importações por produção industrial local foram comemoradas pelo governo que, na primeira tentativa de enfrentar a burla da Receita com transações dissimuladas como se fossem entre pessoas físicas, enfrentou reação forte dos consumidores, o que afetou negativamente a avaliação de Lula em uma pesquisa. O novo caminho escolhido foi tão bem-sucedido, contudo, que a oposição acusou o golpe. O senador Ciro Nogueira, do PP, ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro, ironizou a parceria da Shein com a Coteminas e a Santanense, afirmando que “as duas empresas do presidente da Fiesp estavam praticamente quebradas” e que a operação seria uma contrapartida ao convite de Lula para Gomes da Silva assumir um ministério.
Conforme afirmado acima, contudo, foi a própria Shein que procurou a Coteminas e a Santanense, em uma série de contatos com várias empresas do ramo. Quanto ao convite para o presidente da Fiesp assumir um ministério, o senador omite que a proposta não foi aceita, o que destitui de sentido a interpretação. Outra demonstração de que a oposição não conseguiu assimilar os êxitos do governo na atração de investimento estrangeiro, desprezado no governo anterior, foi a atitude singular do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que anunciou, e deu a entender que era resultado de sua iniciativa, o investimento da Toyota formalizado dias antes em encontro entre um representante da empresa no Brasil e o vice-presidente Geraldo Alckmin, ministro do Desenvolvimento. •
Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.
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