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De verde e amarelo

O Mais Médicos ganha nova roupagem para silenciar os críticos dos exitosos convênios com Cuba

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Trindade criou incentivos para a permanência dos profissionais – Imagem: Walterson Rosa/MS
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O que importa não é saber a nacionalidade do médico, é saber a nacionalidade do paciente, um brasileiro que precisa de saúde”, discursou Lula na segunda-feira 20, na cerimônia de relançamento do Mais Médicos, ora rebatizado de “Mais Médicos para o Brasil”. O apêndice na nomenclatura não é a única mudança. Para silenciar os críticos dos exitosos convênios firmados com Cuba e intermediados pela Organização Pan-Americana de Saúde, a ministra Nísia Trindade repaginou o programa, com a incorporação de uma série de incentivos para que os profissionais brasileiros topem preencher as vagas ociosas em comunidades pobres e remotas. “Tentaram acabar com o Mais Médicos. Venderam toda uma imagem negativa, de forma pejorativa, e não tiveram sequer a vergonha de pedir desculpas aos médicos cubanos que foram embora deste País”, justificou o presidente.

O diagnóstico produzido pela equipe de transição de governo e a crise humanitária do povo Yanomâmi evidenciaram a urgência da retomada do programa, cujo objetivo é levar médicos às regiões mais desassistidas. Segundo Trindade, nos últimos seis anos, período que compreende os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, o governo federal não garantiu a presença de profissionais onde mais havia necessidade e o ano de 2022 ficou marcado pelo maior déficit. Mais de 4 mil equipes da Estratégia ­Saúde da Família ficaram incompletas, sem médicos, “o pior cenário em dez anos”.

O investimento inicial será de 712 milhões de reais, para garantir a contratação de 15 mil novos médicos – 5 mil neste semestre e outros 10 mil a partir de julho. O programa criado em 2013 contava com a presença de médicos brasileiros e estrangeiros e conseguiu atender 63 milhões de pessoas em todas as regiões do País. A meta deste ano é ampliar a equipe para 28 mil médicos, estendendo a cobertura para 96 milhões de pacientes.

Ainda existem em torno de 2,7 mil cubanos contratados na antiga versão do projeto que continuaram vivendo no Brasil após o fim do convênio com Cuba, em 2018, em meio a uma crise diplomática provocada por Bolsonaro. A ideia é reincorporar esses profissionais à nova versão. Desta vez, será aberto um único edital, a priorizar a contratação de médicos brasileiros. Depois, serão convocados os compatriotas formados no exterior. Se ainda assim as vagas não forem preenchidas, serão chamados os estrangeiros, que receberão um registro especial para exercer a profissão no País sem o Revalida, o exame de revalidação do diploma aplicado pelo Conselho Federal de Medicina. Eles só poderão, porém, atuar na atenção básica.

Para garantir a permanência dos profissionais e a presença deles nas regiões mais remotas do País, o Mais Médicos para o Brasil vai oferecer uma série de benefícios aos bolsistas. O incentivo de fixação será pago após 36 meses de trabalho, um aumento de até 20% do valor da bolsa, fixada em 12,8 mil reais. Os médicos que cursaram Medicina com financiamento do Fies poderão abater a dívida com a remuneração. Além disso, os contratos de três anos passam a ter quatro anos de duração, com possibilidade de renovação por igual período. Haverá ainda um bônus durante a licença maternidade de seis meses e será assegurada uma licença paternidade remunerada de 20 dias.

Depois de lavar as mãos para o uso de drogas ineficazes contra o Coronavírus, o CFM renova a oposição ao programa

Um dos princípios da versão anterior era a formação de profissionais voltados à Medicina da Família e Comunidade. Para atingir esse objetivo, houve um esforço para abrir novos cursos de Medicina no interior do País. Passados quase dez anos, milhares de médicos foram formados com esse enfoque. “Agora, podemos ampliar esse leque de especialização porque, na atenção primária, outros especialistas são importantes, como Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia”, comenta a ministra Trindade.

Para o médico especialista em Medicina da Família e Comunidade, Odarlone Orente, que coordena uma equipe do Mais Médicos em Apucarana, no interior do Paraná, a estabilidade propiciada aos profissionais pode ser um dos principais atrativos do novo modelo. “Talvez esse possa ser um embrião do tão sonhado plano de carreira de profissionais do SUS que as entidades médicas pedem há anos. Essa nova versão vai dar possibilidade para os médicos fazerem residência médica, mestrados e especializações, se assim eles quiserem. Isso vai ajudar a qualificar o profissional e consolidar uma carreira no Estado. É algo que a classe médica sempre defendeu.”

A despeito das iniciativas para priorizar a contratação de brasileiros, o Conselho Federal de Medicina, bem como algumas das representações estaduais, mantém oposição ao programa. Ainda em fevereiro, o presidente do CFM, José Hiran Gallo, enfatizou que a categoria “não abre mão” da exigência do Revalida para os profissionais formados no exterior. O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul, por sua vez, acaba de anunciar que tomará “todas as medidas que estiver ao seu alcance” para tentar reverter a decisão do governo. É curioso. As entidades que, nos anos Bolsonaro, lavaram as mãos para a prescrição de cloroquina e outras drogas sabidamente ineficazes contra o Coronavírus agora alegam que o povo corre risco com profissionais de qualificação supostamente inferior.

Orente, que atua no Sindicato dos Médicos do Norte do Paraná, lamenta a oposição ideológica do CFM. “A primeira versão do Mais Médicos já provou que era possível levar profissionais para as áreas mais distantes e garantir estrutura para a atenção básica de saúde. Com os avanços anunciados agora, caíram por terra muitas das críticas que as entidades médicas vinham fazendo. Elas deveriam aproveitar o momento para transformar este programa, que assegura algum grau de estabilidade, em carreira de Estado.”

Na avaliação de Maria Helena Machado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, vinculada à Fiocruz, uma ampla parcela da categoria espera outro posicionamento do CFM. “O Conselho não quer aceitar a ideia de que há vazios assistenciais no País e que também é sua responsabilidade trabalhar para diminuir essa deficiência”, afirma. “Em vez de ataques ao programa, esperávamos que a entidade trabalhasse em parceria com o Ministério da Saúde, contribuindo para a elaboração de políticas públicas capazes de dar mais garantias à classe médica.” •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De verde e amarelo’

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