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Francisco, el hombre

O que faz de Jorge Bergoglio um papa singular na história da Igreja

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O pontífice reaproximou o Vaticano dos fiéis e enfrenta os preconceitos. Os escândalos de abusos sexuais continuam a assombrar a Igreja. O mais recente mancha o episcopado português, comandado por José Ornelas – Imagem: M.Maxwells/ICB e Patrícia de Melo Moreira/AFP
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O celibato, a proibição de padres constituírem famílias, namorar ou viver aventuras amorosas, não é um dogma, mas é encarado como tal. Vigora há nove séculos, desde os Concílios de Latrão, que fincaram as bases da Igreja Católica. Controverso, várias vezes ignorado, foco de intenso debate ao longo da história da religião, o celibato também serve de biombo para bispos e cardeais escaparem pela tangente quando defrontados com a maior das chagas da instituição, os recorrentes abusos sexuais nas paróquias, subterfúgio do qual nem o reformador papa Francisco consegue evitar. Não há nenhuma evidência de que a castidade esteja na raiz dos crimes, quase sempre contra menores, cometidos por clérigos. Ainda assim, a cada novo escândalo, o tema volta à baila. Não foi diferente no sábado 11, dois dias antes de completar uma década no trono da Basílica de São Pedro. O pontífice abordou o assunto em uma longa entrevista ao portal argentino ­Infobae. “Não há nenhuma contradição em que um padre se possa casar”, disse Jorge Bergoglio. “O celibato na Igreja ocidental é uma prescrição temporária. Não sei se se resolve de uma forma ou de outra, mas é provisória.” Por não ser um dogma, apenas uma regra de vida, sugere Francisco, pode ser revisto a qualquer momento.

Nada há de aleatório na pergunta e na resposta. O Vaticano tem sido obrigado a lidar com graves acusações contra clérigos de Portugal, raro país europeu onde o catolicismo continua a ser a religião dominante. Segundo relatório de uma comissão independente divulgado em fevereiro, quase 5 mil portugueses e migrantes, 52% do sexo masculino, foram vítimas de sacerdotes no país, com especial intensidade entre os anos 60 e 90 do século passado, período “obscuro”, na definição de um dos investigadores. O levantamento, desconfia a comissão, captou apenas uma fração dos abusos. Os relatos são contundentes e as evidências, sólidas, ainda assim, após um mês de silêncio, José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, foi incapaz de fugir do script. Em vez de oferecer um gesto de contrição e respeito aos abusados, familiares e fieis, o bispo preferiu a defesa corporativa da congregação. “Para identificar as pessoas e aquilo que são suspeitas, é preciso ter algum dado com solidez, senão vamos fazer caça às bruxas.” Declaração inapropriada em um momento delicado da Cúria portuguesa, desgastada por outro episódio que inundou o noticiário no início do ano: os custos “exorbitantes” do palco em Lisboa que receberá o papa Francisco em agosto, durante a Jornada Mundial da Juventude, o mais pop dos eventos católicos.

Primeiro não europeu e primeiro jesuíta a ocupar o posto, o argentino abraça a missão de reformar a Cúria Romana

Ao longo da década, desde a inesperada renúncia de Joseph Ratzinger e de sua igualmente inesperada nomeação pelo conclave, o próprio papa teve de aprender a enxergar o flagelo com outros olhos. Entre 2005 e 2013, Bento XVI, acusado de acobertar crimes de pedofilia na Alemanha, decidiu afastar esse cálice e expulsou cerca de 800 sacerdotes envolvidos em abusos sexuais. Francisco, o sucessor, assoberbado pelos inúmeros abacaxis decorrentes da herança “maldita” de Ratzinger, incluídos os escândalos financeiros do Banco do Vaticano e as intrigas palacianas, tentou inicialmente uma abordagem menos inquisitorial. Nos primeiros anos, o assunto acabou relegado ao segundo plano e o pontífice mantinha o cacoete de minimizar as denúncias ou de reconhecer a extensão e a complexidade do problema. Até se deparar, em 2018, com as acusações contra padres chilenos e perceber a desconexão entre o que revelavam os inquéritos e as justificativas da cúpula da Igreja. “Essa foi a minha conversão”, declarou à agência de notícias Associated Press. “Foi quando a bomba explodiu, quando vi a corrupção de muitos bispos.” A “conversão” levou-o a uma mudança de postura. Em poucos meses, Bergoglio aprovou uma série de medidas para responsabilizar os sacerdotes acusados e os superiores coniventes.

À parte os resultados assimétricos, o esforço em criar regras para inibir os abusos sexuais é uma das tantas iniciativas que tornam o pontífice argentino, o primeiro não europeu a ocupar o posto, uma figura singular na Igreja, tão amado quanto odiado. “Está claro que Francisco é o primeiro papa realmente global, que libertou a religião das ideias de uma classe média moralista burguesa que ainda definiam o catolicismo”, resumiu à agência de notícias Deutsche Welle o historiador eclesiástico italiano Massimo Faggioli. A afirmação da personalidade marcante de Bergoglio também se estabelece no contraste com a imagem do antecessor. Bento XVI foi o primeiro papa em 600 anos a renunciar ao cargo. Morreu em 31 de dezembro passado, aos 95 anos, no mosteiro Mater Ecclesiae, onde vivia em exílio desde 2013, na companhia do secretário particular Georg Ganswein. Herdeiro da Santa Inquisição, doutrinador, cruzado imbuí­do da missão de afirmar a superioridade moral e divina do cristianismo, Ratzinger externava mais apreço à liturgia e aos sapatos Prada do que aos devotos. Embora os dois tenham mantido uma relação respeitosa e serena nesse período sui generis de convivência entre um papa e um ex, Francisco é o exato oposto. O jesuíta argentino gosta de se misturar à multidão, abriu as portas do Vaticano aos desvalidos e necessitados e costuma usar seu poder simbólico (o papa, como lembrava Joseph Stalin, não comanda um exército) para desafiar preconceitos e estabelecer o diálogo com outras religiões, posição simbolizada, entre outros, no encontro em 2021 com o aiatolá Ali al-Sistani, durante inédita visita de um pontífice ao Iraque, e no Sínodo da Amazônia realizado em 2019, para desgosto do governo Bolsonaro. Nas 40 viagens feitas no período, o papa soube, aliás, balancear os compromissos tradicionais e as visitas à “periferia” do planeta, regiões onde o cristianismo não existe ou é minoritário e perseguido.

Com Maradona, com quem dividia a paixão pelo futebol e apoio ao peronismo. No inédito encontro com o aiatolá iraquiano Ali al-Sistani e com representantes indígenas na preparação do Sínodo da Amazônia – Imagem: Vatican Media/AFP, Sínodo Amazônia 2018 e Oseervatore Romano/AFP

Duas das três encíclicas publicadas no período, a Laudato Si, título inspirado no Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, e a Fratelli Tutti, foram uma tentativa de influenciar na discussão sobre a devastação ambiental, a desigualdade e a ganância. Por sua orientação, um grupo de economistas e especialistas de outras áreas reuniu-se para propor um novo modelo de desenvolvimento, a Economia de Francisco, como recorda Luiz Gonzaga Belluzzo à página 18. “O clima é um bem comum, um bem de todos e para todos”, prega na Laudato Si. “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar ou ocultar os sintomas (…) A falta de reação diante desses dramas é um sinal da perda do sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda toda a sociedade civil.”

A militância elevou Francisco à condição de raro, se não único estadista em um mundo órfão de lideranças. Peronista, apaixonado por futebol, torcedor do San Lorenzo, bem-humorado, Bergoglio poderia recorrer à desbotada frase de um conterrâneo, Che Guevara: Hay que endurecerse pero sin perder la ternura. O papa é suave, mas direto, profundo, sem ser professoral, convicto, mas nem sempre dogmático. O gesto de estender a mão aos católicos LGBTs, resumido em duas frases – “Quem sou eu para julgar” e “ser homossexual não é crime” – e o esforço em aumentar a influência feminina na estrutura eclesiástica ampliaram a aura de reformador. No segundo semestre de 2022, em um primeiro e discreto passo, Francisco elegeu três mulheres para o Discatério, departamento do Vaticano responsável por nomear os bispos. “Isto faz muito bem à Igreja, porque, como diz o papa, a Igreja é uma mulher, é ‘a’ Igreja. Desse modo, certamente, é histórico (…) ter uma visão feminina é algo maravilhoso”, afirmou ao Vatican News Maria Lía Zervino, uma das indicadas.

“Nunca me imaginei como o papa da terceira guerra mundial”, lamenta o pontífice diante do impasse na invasão da Ucrânia

Talvez por não ter divisões – ou exércitos –, Francisco carrega a frustração de ser uma voz ignorada na defesa da paz. Quando assumiu o cargo, os Estados Unidos ainda ocupavam o Iraque e o Afeganistão e a guerra na Síria estava longe de seus instantes mais trágicos. Ainda assim, um mundo acostumado a conflitos não imaginava o que viria pela frente. Em rápida entrevista ao Vatican News, parte das comemorações dos dez anos de papado, Bergoglio confessou nunca ter se imaginado “como o papa da terceira da guerra mundial”. “Pensei que a Síria fosse única, mas, entretanto, chegaram outras”, lamentou. “Ver pessoas jovens a morrer me faz sofrer. Sejam russos ou ucranianos, não importa. Por trás da guerra está a indústria das armas. É diabólico.”

Infelizmente, para Francisco, os demônios não circulam apenas nos campos de batalha. Aos 86 anos, Bergoglio é um dos mais velhos papas em atividade (Bento XVI renunciou aos 85, João Paulo II morreu aos 84). Submetido a uma cirurgia de cólon em 2021 e atormentado por dores no joelho que o obrigam a recorrer a uma cadeira de rodas, o pontífice não consegue mais esconder os sinais de debilidade física. As dúvidas sobre seu estado de saúde anteciparam os conchavos em torno da sucessão e os opositores buscam maneiras de retomar o poder. As especulações aumentaram em outubro do ano passado, após a nomeação de 20 novos bispos, 16 com direito a voto no conclave que escolhe o pontífice. Embora continue a demonstrar disposição para prosseguir no cargo, Francisco não descarta seguir os passos de Ratzinger. “Mudar de papa não seria uma catástrofe. Não pensei nessa possibilidade, mas isto não quer dizer que depois de amanhã não vou pensar. A porta está aberta.” A agenda de compromissos continua, no entanto, cheia. O futuro, repetem os cristãos, a Deus pertence. •

Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Francisco, el hombre

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