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Nem tudo que reluz é lícito

A Polícia Federal fecha o cerco às quadrilhas que “esquentam” ouro do garimpo clandestino em terras indígenas

Nem tudo que reluz é lícito
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Alerta. Não adianta prender só os “peixes pequenos” da mineração ilegal, afirma o delegado Alexandre Saraiva - Imagem: Alberto César Araújo/Amazônia Real e TV Cultura
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Considerado o “bacalhau da Amazônia” e muito apreciado pelo sabor de sua carne avermelhada, o pirarucu foi uma das maiores vítimas da pesca ilegal e predatória nos territórios indígenas durante os quatro anos de governo Bolsonaro. Gigante, podendo chegar a 3 metros, o bicho não é presa fácil e sua captura demanda algumas técnicas há muito ensinadas pelas populações indígenas e ribeirinhas da região. A astúcia e a paciência dos pescadores tradicionais serão necessárias para que o governo federal chegue aos peixes grandes de outro crime amazônico, a extração e comercialização ilegais de ouro, maior responsável pelo desastre humanitário que vitimou o povo Yanomâmi. Por enquanto, após o anúncio na quinta-feira 16 dos primeiros resultados das ações do governo para desmontar a estrutura do garimpo ilegal, resta a sensação de que os cerca de 20 mil garimpeiros braçais, peixes pequenos que progressivamente vão deixando o território indígena em Roraima, fatalmente cairão nas redes da Polícia Federal e do Ibama. Quanto aos grandes bagres, a pesca dará mais trabalho.

“O garimpeiro da ponta não é vítima. Ele tem consciência do que está fazendo, mas não teria conseguido se estabelecer sozinho. É fundamental chegar aos grandes empresários que financiam e coordenam a extração ilegal e comercializam o ouro. Eles são os mantenedores de uma indústria da exploração”, afirma Rodrigo Agostinho, novo presidente do Ibama. Ressaltada pelo governo, a importância de identificar e punir toda a cadeia do ouro ilegal na Amazônia também é cobrada pelo movimento indígena: “A gente sabe que o garimpeiro lá na ponta é apenas um elo dessa exploração. Quem financia tem de ser identificado e investigado. Possivelmente, alguns financiadores sejam políticos do estado de Roraima, muitos deles podem ser grandes empresários. Então é preciso chegar a essa cadeia de financiamento”, diz Kléber Karipuna, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib.

Em um dos esquemas, cerca de 13 toneladas do minério, avaliadas em 4 bilhões de reais, entraram no mercado legal com notas frias

No que depender da disposição inicial demonstrada pelo governo Lula, a temporada de pesca aos pirarucus da exploração criminosa de ouro está aberta. A Operação Sisaque, deflagrada na quarta-feira 15 pela PF, pela Receita Federal e pelo Ministério Público Federal, cumprirá até o fim de fevereiro três mandados de prisão e 27 de busca e apreensão em oito estados e no Distrito Federal, além de promover o sequestro de cerca de 2 bilhões de reais. A investigação, em curso desde 2021, seguiu os passos de uma organização criminosa especializada no “esquentamento” do ouro, ou seja, na obtenção de documentos falsos ou fraudulentos que permitem a comercialização do metal no mercado legal. Até o fim do ano passado, segundo a PF, a quadrilha emitiu notas fiscais para esquentar o ouro extraído ilegalmente em um valor total que ultrapassa os 4 bilhões de reais, o equivalente a 13 toneladas do minério.

O ouro era exportado por duas empresas – Penna & Mello Comércio e Exportações e Amazônia Comércio, Importação e Exportação – que vendiam o produto em países como Suíça, Japão e Emirados Árabes, entre outros. As notas fiscais eram emitidas por empresas legais ou de fachada conhecidas como “noteiras”. O esquema passa pela fraude de um documento, a Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), emitido pela Agência Nacional de Mineração, a ANM. Na maior parte dos casos, o explorador ilegal do ouro utiliza o papel de uma área legal em conluio com seu proprietário. Outra brecha utilizada é a emissão de PLGs para as chamadas “lavras fantasmas”, áreas onde na realidade não há ouro ou este já foi totalmente exaurido. Foram emitidas ordens de prisão contra Diego de Mello, Lilian Pena e Marina Alonso, apontados como donos das empresas investigadas. Eles responderão pelos crimes de usurpação de bens da União, mineração ilegal, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Em Roraima, onde vive o povo ­Yanomâmi, outra operação da PF cumpre, desde 10 de fevereiro, mandados de busca e apreensão para desbaratar um grupo que nos últimos dois anos movimentou pelo menos 64 milhões de reais em ouro extraído ilegalmente no estado. Um dos alvos da ação foi a empresária Vanda Garcia, irmã do governador ­Antonio ­Denarium, do PP. Em nota, ­Denarium disse esperar que “eventuais responsabilidades sejam apuradas na forma da lei”. Segundo a polícia, não há indícios da participação dele no esquema. No meio político, Denarium é conhecido como um defensor do garimpo, assim como os senadores roraimenses Chico ­Rodrigues, recém-chegado ao PSB, e Mecias de ­Jesus, do Republicanos. ­Rodrigues alcançou fama ao tentar esconder 33 mil reais nas nádegas, quando era vice-líder do governo Bolsonaro no Senado, e recentemente foi escolhido presidente da comissão temporária do Congresso que acompanha a crise humanitária Yanomâmi. Já Mecias foi o responsável pelas desastrosas indicações para o comando do Distrito Sanitário Especial Indígena, que deveria ter cuidado da ­saúde dos ­Yanomâmis, mas não o fez.

De acordo com a Junta Comercial de Roraima, nos quatro anos de governo Bolsonaro foram criados no estado 1.315 novos negócios, desde lojas comerciais até pequenas fábricas, ligados à cadeia do ouro. Basta uma volta pelo centro comercial de Boa Vista para que essa realidade salte aos olhos: “Não existe legalidade. É tudo ilegal”, diz o delegado Alexandre Saraiva, que foi superintendente da PF em Roraima e se notabilizou pela abertura do inquérito contra o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em uma investigação sobre o comércio ilegal de madeira.

Anúncio. O projeto Amazônia Mais Segura foi apresentado por Marina Silva, Aloizio Mercadante e Sônia Guajajara – Imagem: Fernando Frazão/ABR

Segundo o delegado, a “palavra-chave” para desmontar a cadeia do ouro ilegal é rastreabilidade: “Mas é necessária uma rastreabilidade científica, e não apenas documental e autodeclaratória, como ocorre atualmente. Cada ouro de cada lugar tem uma assinatura química específica e totalmente particular. A PF tem meios de determinar isso”.

Saraiva completa: “O que não pode é a ANM sair distribuindo licenças de exploração de ouro sem fiscalizar. Com a simples análise das imagens de satélite disponíveis já se derruba mais da metade das licenças de operação concedidas pela ANM. Vai ficar claro que não há exploração em vários locais e que essas licenças existem para esquentar o ouro ilegal”. O delegado acrescenta que, em Roraima, o dinheiro proveniente do ouro que sai ilegalmente acaba retornando e contribuindo para o financiamento de outras modalidades de crime, além do próprio garimpo, como o tráfico de drogas, o desmatamento e a grilagem. “Tudo está visceralmente interligado.”

Karipuna contesta a tese da dependência econômica do ouro ilegal no estado: “O que existe é a falta de políticas públicas adequadas para atender as diversas populações da Amazônia”. O coordenador da Apib diz que criar oportunidades de trabalho e produção ajudaria a diminuir o impacto da exploração minerária nos territórios indígenas. “O discurso da dependência do ouro e de que o garimpeiro braçal só tem isso para fazer, na verdade, é uma desculpa dada pelos financiadores da exploração ilegal dessa riqueza. Nós, indígenas, defendemos o direito territorial de nossos povos em todos os sentidos. O governo e a sociedade devem investir recursos em formação e qualificações diversas para que haja alternativas econômicas que diminuam a pressão hoje exercida sobre os territórios indígenas e outras áreas de preservação.”

A PF bateu à porta de Vanda Garcia, irmã do governador de Roraima, Antonio Denarium, ferrenho defensor do garimpo

O plano para o desmonte da extração ilegal de ouro deverá contar com os recursos do redivivo Fundo Amazônia, agora com a adesão dos EUA. Na primeira reunião do Conselho Orientador do Fundo, realizada, na quarta-feira 15, na sede do BNDES, foi anunciado o projeto Amazônia Mais Segura, coordenado pelo Ministério da Justiça, que contará com recursos internacionais para promover a assistência emergencial aos indígenas e, em seguida, realizar ações de retomada, controle e ordenamento territorial. Estavam presentes na reunião do Conselho as ministras Marina Silva (Meio Ambiente) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas), o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, e o secretário-executivo do MJ, Ricardo Capelli. “Há muitos problemas a resolver na Amazônia. Não apenas crimes ambientais, mas também questões de fome e saúde”, disse Marina ao final da reunião.

Rodrigo Agostinho, do Ibama, afirma que o objetivo neste primeiro momento é reverter “um quadro de ausência total do Estado”. Segundo ele, no governo anterior, o Ibama não atuava, fazia vista grossa. “Agora, o órgão está empenhado em fiscalizar e ajudar a pegar quem tem grande lucratividade com o ouro ilegal da Amazônia, quem sonegou impostos e fraudou documentos e quem usou o ouro para lavar dinheiro de outros crimes”, diz. O presidente do Ibama promete apresentar em breve os resultados das investigações: “Estamos a cada dia mais perto de identificar todos os elos dessa indústria do crime”. •


NAS ASAS DA CORRUPÇÃO

Empresa de táxi aéreo alertou Bolsonaro sobre pedido de propina, mas o ex-capitão ignorou a denúncia

TI Yanomâmi. A Voare transporta as equipes de saúde – Imagem: Fernando Frazão/ABR

Durante os dois anos de pandemia, o consumo de combustível para aviação teve queda de 10% na média nacional. No mesmo período, o item registrou aumento de 89% em Roraima. A aviação no espaço aéreo da Terra ­Yanomâmi é um elemento central para entender o sucesso do garimpo ilegal no estado e voltou aos holofotes esta semana, após o vazamento da informação de que a empresa Voare Táxi Aéreo, única com autorização para operar no local, teria alertado o governo Bolsonaro sobre tentativas de corrupção por parte do comando do Distrito Indígena Yanomâmi.

Segundo a empresa, para forçar o pagamento de propina, o coordenador do distrito, Francisco Dias, passou a exigir que as aeronaves fossem equipadas com macas, balões de oxigênio e equipamentos de primeiros socorros, o que não constava do contrato original. Em nota, Dias afirma que prestou esclarecimentos ao Ministério Público e entregou documentos que comprovam a inabilitação da Voare para prestar o serviço desejado. Responsável pela indicação do coordenador, o senador Mecias de Jesus qualificou a denúncia de propina como “vazia, leviana e descabida”.

O assunto veio à tona após denúncias de que a Voare teria recebido boa parte dos recursos ­destinados à saúde dos ­Yanomâmis durante o governo Bolsonaro. Uma das sócias, Maria Helena Lima, que deixou oficialmente a empresa em dezembro de 2022, assumiu um mês depois mandato como ­deputada federal, eleita pelo MDB. Por sua vez, o presidente da Voare, ­Renildo Lima divulgou nota negando qualquer favorecimento e afirmando que sua empresa ganhou a licitação para operar na Terra Yanomâmi, após vencer um pregão eletrônico nacional coordenado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai): “Não fosse a atuação da Voare, a situação dos Yanomâmis seria muito pior”.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nem tudo que reluz é lícito “

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