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Ucrânia, ano 2

A Rússia ameaça uma nova escalada na guerra prestes a completar 365 dias

Ucrânia, ano 2
Ucrânia, ano 2
Putin, dizem as agências de inteligência ocidentais, prepara uma nova ofensiva para marcar o primeiro ano da invasão. Ninguém imaginava um conflito tão longo e custoso - Imagem: Presidência da Russia e Yasuyoshi Chiba/AFP
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Há algo trágico e patético nas recentes turnês internacionais de Volodymyr Zelensky. O presidente da Ucrânia continua, ao menos em público, a ser recebido com candura pelos líderes ocidentais, e seus apelos, diante da tragédia vivida pelos compatriotas, não perderam a pertinência, mas o ex-comediante parece cada dia mais com aquele parente em eterna dificuldade que ninguém quer ou sabe como ajudar. Desde fevereiro do ano passado, a União Europeia enviou aos ucranianos 52 bilhões de euros (cerca de 250 bilhões de reais), ante 48 bilhões de euros injetados pelos norte-americanos. Nada diante das demandas diárias. Após visitar na véspera do Natal o presidente dos ­Estados Unidos, Joe ­Biden, em Camp ­David, a casa de campo onde Franklin Roosevelt e ­Winston Churchill­ tiveram conversas decisivas sobre a Segunda Guerra Mundial, o ucraniano registrou a proximidade de um ano da invasão com um périplo por ­Londres, Paris e Bruxelas, sede da União Europeia. No Velho ­Continente, ouviu carinhosas palavras de incentivo e a promessa de que a adesão do país à UE se dará em tempo recorde, dois anos (sabe-se lá como e a que custo). Quanto às demandas urgentes, o envio de armas e munições, teve de se contentar com os discursos vagos de sempre, salvo o anúncio da chegada, em algum momento até a primavera, de uma pequena frota de tanques norte-americanos, britânicos e alemães prometidos antes da viagem.

Segundo Jens Stoltenberg, secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte, as forças de defesa ucranianas consomem armamentos em uma velocidade que o Ocidente tem dificuldade em suprir. A demora na cessão de blindados mostra, porém, os receios dos integrantes da Otan de ir além de certo nível de participação e de determinada retórica. Zelensky conseguirá convencer o Ocidente a enviar caças e mísseis? Stoltenberg desconversa: “A nossa prioridade é assegurar a entrega de artilharia pesada e sistemas modernos de defesa antiaérea”. Os europeus, nota-se, preferem insistir nas sanções econômicas à Rússia e nos compungidos aplausos de pé ao fim dos discursos do presidente ucraniano, que voltou a invocar os sentimentos nobres dos colegas na recente viagem. “Uma Europa livre não pode ser imaginada sem uma Ucrânia livre”, afirmou. “Só a nossa vitória vai ser a garantia de cada um dos valores europeus comuns.” Quem se importa?

O número de mortos dos dois lados aproxima-se da casa dos 300 mil

Há algo igualmente trágico e patético na soberba de Vladimir Putin. A confiança na vitória e as ameaças de nova escalada no conflito, incluído o uso do arsenal atômico, destoam da óbvia fragilidade material e estratégica do exército russo no campo de batalha. Putin acreditou ou fez o mundo acreditar em “uma operação militar especial” de curta duração. Quase um ano depois, duas trocas de comando e pesadas baixas nas tropas, o presidente e seus generais encontram-se em um mato sem cachorro, espremidos nas fronteiras da região de Donbas, na luta encarniçada por centímetros de território e sem encontrar maneira honrosa de encerrar a aventura. Sem um plano factível, Putin rendeu-se ao Grupo Wagner, batalhão de mercenários recrutados por Dmitry Utkin, veterano das batalhas na Chechênia, e financiado por Yevgeny Prigozhin, oligarca próximo ao Kremlin. Com presença em conflitos globais ou tribais, da Síria à África, o grupo, que coleciona “pequenos avanços” em Bakhmut, a leste de Donetsk, é o único trunfo de Putin nestes meses de inverno. Enquanto reorganiza os soldados, o governo russo eleva o tom contra os adversários. Na terça-feira 14, o porta-voz Dmitry Peskov retomou as críticas à Otan, “uma organização hostil e que prova essa hostilidade diariamente”. Putin, avisa Peskov, pretende fazer um discurso ao povo em 21 de fevereiro, três dias antes do aniversário da invasão. Na sexta-feira 10, o presidente russo tocou, porém, em um dos prováveis pontos do pronunciamento, ao lembrar da Euromaidan, a revolução ucraniana apoiada pelos EUA que levaram à renúncia de Viktor Yanukovytch, mandatário pró-Kremlin. “Não começamos as hostilidades e estamos a tentar pará-las. Essas hostilidades tiveram início com os ucranianos nacionalistas e os seus apoiadores em 2014, quando ocorreu um golpe. Foi assim que tudo teve início e os eventos da Crimeia e de Donbas se seguiram.”

Zelensky recebe de Von Leyden e Michel muitos afagos, mas preferiria a sua parte em armamentos pesados e muita munição – Imagem: Kenzo Tribouillard/AFP e Yasuyoshi Chiba/AFP

Parênteses: Trágica e patética é a teoria ocidental a respeito do enfraquecimento de Putin e de sua iminente derrota. As sanções impostas ao país e aos bilionários russos surtiram o efeito inverso. Os oligarcas não conspiraram contra o Kremlin e, à exceção das manifestações nos dias iniciais do conflito, reprimidas violentamente, diga-se, a população, afetada pela russofobia, prefere direcionar sua fúria aos “inimigos” europeus, não ao presidente. “A propaganda russa funciona e o regime é muito mais estável do que alguns gostariam de acreditar”, resumiu em entrevista a socióloga Dina Khapaeva, que vive na Geórgia.

A invasão aumentou os riscos de recessão global e inaugurou uma nova Guerra Fria

Doze meses depois, a guerra deixou de ser um evento excepcional, como a morte da rainha Elizabeth II ou o terremoto na Síria e Turquia. O exército de jornalistas debandou, em busca de outros dramas. Os corpos pelas ruas de Bucha, as famílias separadas, os resistentes, os desesperados, os desertores parecem a esta altura personagens de uma batalha distante. Os relatos na imprensa tornaram-se burocráticos, monótonos, boletins de trânsito. Mas o conflito continua a impor suas dores e perdas. Aos ucranianos e russos na linha de frente resta contar os mortos e os prejuízos. De acordo com o ­Institute for the Study of War, think thank de ­Washington, até o fim de janeiro, o número de vítimas da invasão, de um lado e de outro, somava cerca de 300 mil, entre civis e militares. A economia da Ucrânia encolheu 30%, um terço da população, em especial mulheres, idosos e crianças, refugiou-se em outros países e a infraestrutura de energia perdeu 40% da capacidade, o que torna mais penoso enfrentar temperaturas próximas dos 50 graus negativos. Em relatório do mesmo período, o instituto, que reúne falcões da guerra, apontou a possibilidade de uma bem-sucedida contraofensiva da Rússia nos próximos meses, diante da dificuldade da Ucrânia em obter apoio militar efetivo da Europa e dos Estados Unidos. “A relutância ocidental em começar a fornecer sistemas de ponta, particularmente tanques, armas de longo alcance e de defesa área, limitou a capacidade ucraniana”, diz o texto. Em entrevista à rede de tevê Al Jazeera, ­Wolfgang Ishinger, presidente da Conferência de Segurança de ­Munique e ex-embaixador da Alemanha nos EUA, mostrou-se pouco otimista. “Desejo à Ucrânia e a todos nós um fim rápido para esta guerra. Em política externa deve-se, porém, sempre contar com o pior cenário. O pior neste instante é um conflito sangrento que se arraste por anos.”

Fonte: Institute for the Study of War atualizado em 14 de fevereiro de 2023

Passados quase 365 dias da manhã em que os soldados russos cruzaram as fronteiras da Ucrânia, quase todas as piores previsões se concretizaram. O planeta foi lançado em uma nova espiral de crise, quando ainda não havia se recuperado do impacto da mais grave pandemia em um século. A alta do preço do petróleo e do gás provocou a disparada da inflação global. Os Bancos Centrais responderam do modo usual e ineficaz, elevaram as taxas de juro. Tudo dentro do esperado. As economias, desenvolvidas ou em desenvolvimento, vivem agora assombradas pelo risco da recessão, a escalada do desemprego e a perda do poder aquisitivo da população, traduzida, em muitas regiões, em miséria e fome.

No plano geopolítico, a guerra encerra as pretensões multilaterais e estabelece o retorno da lógica da Guerra Fria, um mundo bipolar marcado pela hostilidade e desconfiança. Há apenas uma dança de cadeiras. Sai Moscou, entra Pequim no papel de antagonista de Washington. Teriam, porém, os chineses a intenção de impor uma nova ordem mundial como sonhavam os soviéticos? Ao site Vox, o historiador Sergey Radchenko, especialista no tema e professor da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, levanta dúvidas. “A China é a líder deste novo alinhamento, mas não sei se alimenta a mesma ambição da União Soviética, de transformar o mundo”, afirma. “Do ponto de vista de Pequim, o mundo parece mais caótico e os chineses tentam tirar proveito. Mas não está claro se eles têm o mesmo tipo de busca obstinada pela transformação global que a URSS fez por meio da ideologia marxista-leninista.” Pode ser apenas uma questão de estilo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ucrânia, ano 2”

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