Economia
Duelo ao sol
Lula reclama de enfrentar sozinho Roberto Campos Neto, presidente do BC


Lula foi na segunda-feira 6 ao Rio de Janeiro, terra do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para compromissos oficiais e, na volta a Brasília, queixou-se no voo de que não podia brigar sozinho com a instituição. Os aliados políticos, entre eles algumas testemunhas da queixa, precisavam apoiá-lo. Mais cedo, o petista tinha comparecido à posse de Aloizio Mercadante no BNDES, o banco público de apoio ao desenvolvimento nacional, e depois comentou no avião não ter ficado lá muito satisfeito com o discurso ouvido. Um ponto em especial o incomodara. “Não pretendemos ficar disputando mercado com o sistema financeiro privado”, declarara Mercadante. Lula quer que os bancos estatais concorram com os particulares. Baixar os juros dos empréstimos aos cidadãos e às empresas tornou-se uma obsessão. A expansão do crédito faz o motor da economia girar. O Brasil tem hoje a maior taxa básica do mundo, 13,75% ao ano. A chamada Selic dita o rumo dos juros bancários praticados no mercado e, no tamanho atual, afoga o motor.
Em novembro, o deputado Lindberg Farias, do PT do Rio, dizia a CartaCapital que “o Banco Central pode ser um problema para nossa estratégia de retomada do crescimento econômico e de geração de empregos”. O receio confirmou-se, diante da disposição expressa pelo BC, no início do mês, de manter a Selic alta por um tempo maior. “É sabotagem contra o governo”, afirma o parlamentar, autor de um pedido de convocação de Campos Neto à Câmara para prestar esclarecimentos. Segundo o deputado, a aprovação presidencial será fundamental contra a oposição radical bolsonarista, terá de ser medida dia a dia. Lula elegeu-se no aperto contra Jair Bolsonaro, graças ao eleitor mais pobre, a quem seus governos anteriores eram promessa de vida melhor. O presidente acredita ter derrotado o capitão, mas não o bolsonarismo. Diante da dinâmica das redes sociais e da força da extrema-direita nas plataformas digitais, o clima eleitoral será permanente. Quanto tempo irá durar a paciência popular com o petista? Em 30 de janeiro, Bolsonaro, do autoexílio em Miami, prognosticou em uma palestra: pelo visto no primeiro mês, o governo “não vai durar muito tempo”.
“Se o País não voltar a crescer, não sei se a gente vai segurar”, declarou Lula no evento no BNDES. Era uma referência à intentona dos fiéis do capitão em 8 de janeiro. “Não podemos brincar, porque um dia o povo pobre pode se cansar de ser pobre e pode resolver fazer as coisas mudarem nesse País. E eu ganhei as eleições exatamente para fazer as mudanças que não eram feitas. Se nós conseguirmos decepcionar esse povo, e o povo passar a desacreditar em nós, eu fico pensando o que será desse País.”
O petista convocou os aliados para uma cruzada contra os juros altos. Surtirá efeito?
Dois dias após voltar do Rio, Lula reuniu no Palácio do Planalto parlamentares e dirigentes partidários governistas e botou o Banco Central na berlinda. Não há “justificativa” para o juro estar no nível vigente, comentou, e foi uma “vergonha” a explicação dada pela direção da instituição para ter mantido a taxa e acenado que seria assim por mais tempo do que imaginava necessário. A explicação constava do comunicado divulgado após o último encontro do Comitê de Política Monetária, o Copom, em 1º de fevereiro, que havia tirado Lula do sério. Em entrevista no dia seguinte, o petista declarou guerra a Campos Neto, chamado por ele de “esse cidadão”. É para a batalha contra o economista de 59 anos, herança de Bolsonaro por obra da lei de autonomia do BC, que o presidente queria o apoio da tropa. E parece ter conseguido, ao juntá-la na quarta-feira 8. “O presidente do Banco Central tem que ser enquadrado, ser convocado no Congresso, na Câmara, no Senado, e explicar por que tem que manter juros reais de 8%”, disse publicamente um participante da reunião, Paulinho, presidente do partido Solidariedade e expoente da Força Sindical.
O juro real é a Selic descontada da inflação. É o lucro limpo de quem compra certo título público. Nos Estados Unidos, para onde Lula embarcou na quinta-feira 9 a fim de encontrar Joe Biden, a taxa básica está em 4,75% e a real, negativa em 1,75%. Na Europa, o juro real também está negativo (-6%). Na Rússia, que enfrenta a guerra na Ucrânia e sanções mundiais em razão do conflito, ele é de 4%. China, Índica e África do Sul, outros parceiros do Brasil nos Brics, convivem com porcentuais bem menores do que o brasileiro. Lula deseja reduzir a Selic a 7%, 8% nominais até dezembro. Foi o que disse o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues, no fim da reunião no Planalto. Segundo o senador, com a aprovação de uma reforma tributária, a apresentação ao Congresso de uma lei de controle de gastos e a votação de uma medida provisória que eleve a arrecadação federal contra calotes empresariais nos impostos, o BC teria conforto para baixar o juro. “Se nos resignarmos aos 13,75%, a gente vai se conformar com 0,7% de crescimento no fim do ano. Não aceitamos.”
As previsões do mercado financeiro para o crescimento do Brasil nos próximos dois anos são péssimas. Média de 1% – Imagem: Suamy Beydoun/Agif/AFP
PIB de 0,7% neste ano é o que prevê a média do “mercado” consultado semanalmente pelo BC. Outras estimativas são igualmente desanimadoras. Itaú: 0,9%. Consultoria XP: 1%. Fundo Monetário Internacional: 1,2%. Bradesco: 1,5%. Pelas mesmas apostas, 2024 será outra decepção (de 1% a 1,5% de crescimento). “O que não é possível é continuar crescendo meio por cento ao ano. Não é possível. Não há conflito distributivo superável crescendo meio por cento ao ano. Nós não vamos nos entender com esse crescimento. As tensões tendem a piorar.” Palavras de Fernando Haddad, o ministro da Fazenda, em novembro, em um almoço de fim de ano da Febraban, a federação dos bancos. Lula pretende convocar ao Planalto os dirigentes da Febraban e o comandante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Josué Gomes da Silva, para pedir adesão à campanha contra o juro alto. “É preciso, Josué, que você saiba que se a classe empresarial não se manifestar, se as pessoas acharem que vocês estão felizes com o 13,5%, sinceramente eles não vão baixar juros”, disse o presidente no BNDES. Gomes da Silva, que recusou o convite para o Ministério da Indústria, é filho do falecido vice de Lula nos dois mandatos anteriores, José Alencar, inimigo da alta taxa, que cairia de 25% para 10% ao ano entre 2003 e 2010.
Na cruzada contra Campos Neto, Lula parece movido pela desconfiança de que falta o apetite de Alencar ao ministro da Fazenda quando se trata do mesmo assunto. É o que diz um político do PT que conversou com o mandatário nos últimos dias. O presidente, diz essa fonte, acredita ter um legado a preservar e que sua biografia está em jogo. Colaboradores lulistas como Haddad e Mercadante estariam, ao contrário, em busca de aceitação do “mercado”. Essas impressões do político foram corroboradas por Lula na reunião na quarta-feira 8. “A gente não tem que pedir licença para governar, a gente foi eleito para governar. A gente não tem que agradar ninguém, a gente tem que agradar o povo brasileiro, que acreditou num programa que nos trouxe até aqui e é esse programa que nós vamos cumprir.”
Haddad busca abaixar a fervura e encontrar um ponto de diálogo, enquanto Lula opta por manter a pressão
Do início da campanha de Lula contra o BC até o momento da reunião com os aliados, integrantes do governo ou assessores haviam dito anonimamente à mídia que aconselhavam o mandatário a maneirar nos ataques a Campos Neto. Um ministro da área econômica chegou a comentar com o portal G1 que a “ofensiva” de Lula “está acima do tom e é hora de deixar a equipe econômica trabalhar”. Quem seria esse ministro? A emedebista Simone Tebet, do Planejamento, que havia concorrido a presidente tendo como sua economista-chefe a liberal privatista Elena Landau?
Conselhos, se de fato houve, não demoveram Lula. Em 19 de janeiro, o ministro da articulação política, Alexandre Padilha, do PT, havia tuitado: “O governo sabe que a política monetária e o papel de análise da macroeconomia do Banco Central são de extrema importância. E, também por isso, a convivência respeitosa entre as instituições vai continuar sendo a ordem dessa gestão”. Numa entrevista um dia antes, Lula chamara de “bobagem” a autonomia do BC e contestara a decisão do banco de fixar a meta de inflação abaixo de 4%. Quanto menor a meta, mais o BC é levado a pesar a mão no juro. A decisão de reduzi-la tinha sido tomada em 2018 pelo antecessor de Campos Neto, Ilan Goldfajn, e o Ministério da Fazenda, ainda no governo Temer. Apesar do tuíte de Padilha, Lula seguiu a criticar Campos Neto e o BC, e de modo ainda mais contundente. Detalhe: na eleição, Padilha era cotado para comandar a Fazenda. Seu chefe de gabinete é um ex-analista político da XP, Richard Back, bússola sobre os humores do sistema financeiro.
Haddad viu na ata do Copom um certo voto de “confiança” na política econômica – Imagem: Valter Campanato/ABR
Haddad também preferia contemporizar. Na terça-feira 7, véspera da reunião com aliados no Planalto, o ministro tinha classificado de “amigável” a ata do Copom divulgada naquele dia sobre a decisão de manter o juro em 13,75% e de conviver com essa taxa mais tempo. O breve comunicado da semana anterior havia sido interpretado por analistas do “mercado” como uma reação à intenção do governo de gastar mais. O recado seria: mais gastos, mais inflação, mais juros. A ata em si foi vista como uma tentativa do BC de transmitir uma espécie de voto de confiança no governo, daí a leitura do ministro da Fazenda.
Haddad e Campos Neto estiveram três vezes frente a frente. Em 13 de dezembro, no BC, no período de transição. Em 30 de dezembro, no hotel em que Lula estava hospedado em Brasília (único tête-à-tête, aliás, do presidente com o chefe do BC). E em 30 de janeiro, no escritório do Ministério da Fazenda em São Paulo. Em uma dessas conversas, os dois concordaram em procurar nomes consensuais para substituir uma dupla de diretores cujos mandatos terminam neste mês, o de Política Monetária, Bruno Serra, e o de Fiscalização, Paulo Sérgio Neves de Souza. A lei da autonomia, ou independência, do BC, de 2021, fixa mandato para os dirigentes. A diretoria de Serra é estratégica em razão da taxa de juro. Não importam, porém, acertos entre Haddad e Campos Neto: cabe ao presidente da República enviar a indicação ao Senado para aprovação.
Lula reclamou de uma declaração de Mercadante na posse do BNDES. Tebet vai decidir, ao lado de Haddad e Campos Neto, a meta de inflação – Imagem: Marcelo Camargo/ABR e José Cruz/ABR
O mandato do presidente do BC vai até dezembro de 2024 e ele tem dito que não pretende sair antes. Pela lei, poderia ser demitido por incompetência. Foi o que uma certa voz lembrou no Planalto, após o comunicado do Copom de 1º de fevereiro, aquele que Lula tachou de “vergonha”. Nos últimos dois anos, justamente na era da autonomia, a inflação estourou o teto da meta. A julgar pelas previsões do “mercado” (de 5,7% de IPCA este ano), será igual em 2023 (teto de 4,75%). É possível que o governo altere a meta deste ano (3,7%) e dos dois vindouros (3%, com teto de 4,5%) em uma reunião do Conselho Monetário Nacional no dia 16. O CMN é formado por Haddad, Tebet e Campos Neto. Seria uma forma de criar condições para o juro cair. Os ministros da Fazenda e do Planejamento conversaram na terça-feira 7 sobre a pauta do conselho. No “mercado”, há quem diga que, se for para mudar a meta, que seja logo, e não só em junho, como é costumeiro. É a opinião, entre outras, do economista-chefe do Bradesco, Fernando Honorato.
Vozes do dito mercado saíram em defesa nos últimos dias de Campos Neto. É o caso de Arminio Fraga e Henrique Meirelles, ex-presidentes do BC. A dupla diz, em suma, que as manifestações presidenciais atrapalham o Banco Central e pioram as coisas, pois a autoridade monetária sente-se forçada a pegar ainda mais pesado no juro, a fim de mostrar independência e desfazer estragos causados nas expectativas dos agentes econômicos pelas críticas do governo. Recorde-se: uma das razões para a eleição de Lula foi o aumento no custo de vida e a perda do poder de compra na era Bolsonaro. O salário médio está em 2,7 mil reais, mesmo nível de 2012. Em janeiro de 2019, primeiro ano do capitão, uma cesta básica em São Paulo custava em média meio salário mínimo. Agora, dois terços, conforme o Dieese. Na época da eleição, cerca de 80% das famílias mais pobres estavam endividadas. Contra isso, o governo prepara um programa de rolagem das dívidas, o “Desenrola”, esforço conjunto de credores, devedores e bancos públicos e privados. Com isso, diz o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello, os consumidores terão mais poder de compra e poderão voltar a tomar empréstimos. “O programa tem potencial para dinamizar a economia”, afirma Mello.
Ao contrário dos atos terroristas de 8 de janeiro e do genocídio Yanomâmi, a mídia opta por alinhar-se ao mercado contra o petista
Quem conhece Campos Neto reforça a visão de Fraga e Meirelles: 2023 é ano perdido no PIB e os ataques do presidente ameaçam comprometer 2024 também. A inflação do próximo ano entrou nas análises do Copom em fevereiro e será ainda mais levada em conta na reunião de março. Campos Neto, diz um conhecido, é afável e Lula até poderia gostar dele, se ambos conversassem com calma. O petista tinha boa impressão do economista, considerava-o razoável. Foi o que Haddad disse certa vez, em 2021, a analistas de uma empresa do sistema financeiro. O fato de Campos Neto ter ido votar, em outubro passado, com a camisa da Seleção brasileira, uniforme bolsonarista, deve ter afetado essa percepção. Idem sua presença, até 10 de janeiro, no grupo de WhatsApp “ministros de Bolsonaro”. A presença foi descoberta naquele dia pela fotógrafa Gabriela Biló, da Folha de S. Paulo, no celular do senador Ciro Nogueira, do PP, ex-chefe da CasaCivil de Bolsonaro e um dos cabeças da campanha à reeleição.
Campos Neto e Nogueira tinham intimidade. Em outubro de 2021, o então ministro promoveu um churrasco em casa e o economista esteve presente, de bermudas. Foi o que se viu em uma foto tuitada por Nogueira. Estavam por lá também outros dois então ministros, Fabio Faria e Tarcísio de Freitas, agora governador de São Paulo, cuja posse foi prestigiada pelo presidente do BC. Dias depois do churrasco, veio a público um áudio no qual Campos Neto consultava o banqueiro André Esteves, do BTG, sobre qual seria o juro mínimo aceitável para o Brasil. O áudio era do próprio Esteves, gravado durante uma palestra. À época, a Associação Brasileira de Imprensa requereu ao Supremo Tribunal Federal uma investigação contra o dirigente da instituição pública por uso de informação privilegiada. A Corte pediu a opinião da Procuradoria Geral da República, esta não viu nada demais, assunto encerrado.
O presidente quer o apoio dos empresários, entre eles Gomes da Silva, da Fiesp, na campanha pela redução dos juros – Imagem: Geraldo Magela/Ag.Senado
Parte da mídia está do lado de Campos Neto na guerra declarada por Lula. Em editoriais recentes, a Folha e O Globo criticaram o petista. Esse tipo de manifestação, somada à posição de Fraga e Meirelles, indica que aquela união informal de setores da elite e dos meios de comunicação à campanha lulista contra Bolsonaro não terá vida longa, por causa justamente da política econômica. Recorde-se: Fraga e Meirelles declaram voto no petista.
A política monetária de Bolsonaro, Paulo Guedes (antecessor de Haddad) e BC “foi derrotada nas eleições, porque fez o País andar pra trás”, tuitou Gleisi Hoffmann, a presidente do PT. “Essa parece a última trincheira do bolsonarismo no poder.” Trincheira que, aliás, cometeu um “errinho” de 14 bilhões de dólares na conta sobre o fluxo cambial no Brasil no ano passado. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Duelo ao sol”
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