Editorial

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De avô para neto

A frondosa árvore genealógica da família Campos

De avô para neto
De avô para neto
No restaurante da Editora Abril, encontro com Roberto Campos e Delfim Netto - Imagem: Arquivo pessoal
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Dia 1º de janeiro passado, no seu discurso de posse para um terceiro mandato, Lula foi claro na definição do impeachment de Dilma ­Rousseff, a quem caberia prosseguir no caminho traçado pelo antecessor. Michel Temer arcou com o papel de usurpador e assumiu a Presidência. Ficou evidente então o papel do vice inconfiável, a se tornar insuflador do golpe, desafiando a Constituição. No outro dia, como diria Mário de Andrade, Temer perpetrou uma conferência filmada pela televisão, apresentado como ex-presidente da República. Que país é este, capaz de celebrar um passado clamorosamente inconstitucional, ao deixar de punir o vilão da bandalheira?

Há muito de podre neste episódio, bem como na pretensão de nítida inspiração bolsonarista de manter a independência do Banco Central. Lula não hesitou, no seu memorável discurso de posse, em definir como golpe o impeachment de ­Dilma Rousseff, que haveria de dar prosseguimento ao seu governo. Estranha, embora perfeitamente inserida no contexto irregular, a pressão para manter a independência do BC precipitada pelo bolsonarismo contra a vontade plenamente justificada pelo governo levado ao poder no pleito de outubro passado.

Singulares coincidências por ora mantêm no comando do BC um certo Roberto Campos Neto, homônimo do avô que serviu à ditadura na definição de sua política econômica, sem contar a passagem pela embaixada de Londres. Naquele tempo eu dirigia a revista Veja e de minha atuação Campos queixava-se junto a Victor Civita, fundador e dono da Editora Abril. Campos chegava a pressionar com o propósito de visar a minha demissão. Era do conhecimento da redação, diria mesmo do mundo mineral, a sua pretensa vocação de Casanova, exercida com empenho desabusado em um clube que reunia no seu andar nobre as mais belas escort girls de São Paulo.

Michel Temer na contemplação da alegria do Congresso com o impeachment de Dilma Rousseff – Imagem: Andressa Anholete/AFP

O local era decorado com esmero e lá ele podia ficar à vontade, entregue a amplexos juvenis. Não faltaram incursões de repórteres atilados para colhê-lo em ação. Tempos de diversão à sombra da ditadura. Não sei se o neto de tanto avô lhe repete ou não determinadas façanhas, mas é certo que Lula não o quer onde está, para impedir a esdrúxula independência do BC. Foi obra de Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” do governo Bolsonaro, a nomeação deste derradeiro contemplado na árvore genealógica da família Campos.

Já sabemos da tendência conciliadora do presidente da República, mas desta vez é possível que um contencioso de importantes consequências políticas venha a se estabelecer em torno de mais este Campos indesejado pelo governo. As apostas dos interessados trafegam por enquanto nos domínios da incerteza, embora não faltem demonstrações das resistências do status quo. Por exemplo: Arthur Lira, presidente da Câmara, equilibrista de denodada atuação, é um notável imitador do arlequim servidor de dois amos. E não é pouco, pois, de geração em geração, só existe um ator capaz de interpretar o papel da personagem de Carlo Goldoni.

Arthur Lira produz o desempenho que lhe convém em cada situação, com habilidade provecta. Como se sabe, neste exato instante goza do apreço de Lula, da mesma forma que mereceu de Bolsonaro. Haverá quem diga que tal é o jogo político. Admita-se, contudo, que a coerência por aqui escarpeia, mesmo por causa da falta de partidos ancorados em tendências ideológicas sólidas e imutáveis. No Brasil, cada situação, cada impasse, cada momento de tensão tem necessariamente de cantar, mesmo que o vinho ou o assunto não sejam de primeira qualidade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De avô para neto “

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