Política
O núcleo
Enquanto negocia com os partidos aliados, Lula anuncia a espinha dorsal do futuro governo


No domingo 11, Lula recebeu o desenho final, elaborado pela equipe de transição, dos cargos do futuro ministério. Uma das sugestões era a criação de uma secretaria especial de mudanças climáticas, posto ligado diretamente à Presidência, como passou a existir nos Estados Unidos com Joe Biden. “A autoridade sou eu”, reagiu o petista, ao rejeitar a sugestão. A ideia havia brotado durante a campanha e partiu da ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, que sonhava com a vaga. Marina Silva, outra ex da área, reconciliou-se com Lula ao longo do processo eleitoral e alimenta o desejo de voltar à pasta. As rivalidades entre ambas tornaram quase impossível a presença das duas simultaneamente no novo governo. “É uma ou outra”, diz uma testemunha dos acontecimentos em Brasília. Como o presidente eleito sairá dessa?
No entorno, despontou uma solução surpreendente: entregar o comando do Meio Ambiente à senadora Simone Tebet. A decisão tiraria das costas do petista a obrigação de escolher ou Izabella ou Marina. E garantiria à emedebista um palco luminoso. Os ambientalistas aceitariam? A ex-presidenciável do MDB é ruralista. Nasceu e fez carreira política em um estado de tradição agrária, o Mato Grosso do Sul. Hoje em dia parece à vontade naquele figurino de certa direita, não só no Brasil, que abraçou a causa ambiental. Ao aderir a Lula na eleição, Tebet imaginava-se na área social. Mais especificamente, à frente do Bolsa Família. Sua ausência na diplomação do presidente eleito no Tribunal Superior Eleitoral, na segunda-feira 12, sugeria uma insatisfação com o espaço que lhe seria reservado. “Não façam tempestade onde não existe”, disse ela a CartaCapital um dia depois.
Mercadante venceu as resistências e levou o comando do BNDES – Imagem: Valter Campanato/ABR
O petista, conta um integrante da transição, está decidido a ter o controle total do Bolsa Família, com alguém de inteira confiança no cargo. O público atendido pelas políticas sociais fez de Lula, desde sua saída da prisão em 2019, concorrente forte contra Jair Bolsonaro. “Quando decidi ser candidato”, afirmou o ex-metalúrgico na terça-feira 13, “é porque eu tinha consciência que naquele instante histórico só existia uma pessoa que podia derrotar o Bolsonaro, que era eu, por conta do meu legado.” O futuro presidente luta neste fim de ano para encontrar dinheiro no orçamento, a fim de manter em 2023 o valor de 600 reais de pagamento do Bolsa Família. Faltam cerca de 70 bilhões de reais. Quem anda em alta na bolsa de apostas para administrar o programa? O líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes, é um dos cotados. Mineiro como o “pai” do Bolsa Família, o deputado Patrus Ananias. Ou seria melhor uma mulher, como a paulista Tereza Campello, ministra no governo Dilma Rousseff?
A presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, outra protagonista feminina deste enredo, jogou a favor de Lula, enquanto o petista monta o xadrez do futuro ministério. Da série voltas que o mundo dá: no julgamento do “mensalão”, há dez anos, a ministra tinha o então juiz Sergio Moro como auxiliar. Em 2018, coube a ela o voto decisivo a negar a Lula um habeas corpus contra a prisão decretada por Moro, após a condenação do petista no caso do tríplex do Guarujá. Na quarta-feira 14, a magistrada, como esperado, foi dura ao votar contra o “orçamento secreto”, atacado por Lula na campanha. O julgamento seria retomado na tarde seguinte, após a conclusão desta reportagem. O “orçamento secreto” é a fonte do poder de Arthur Lira, o presidente da Câmara. O deputado deixou correr a ameaça de que, se a Corte lhe tirasse o doce da boca, o troco seria em Lula, na votação da proposta que permite ao governo ignorar o teto de gastos para bancar o Bolsa Família de 600 reais. A votação na Câmara ficou para os próximos dias e apenas depois dela Lula finalizaria o quebra-cabeça do ministério. Veria antes com quem, por enquanto, pode contar.
O PT não abre mão do controle dos principais ministérios nas áreas social e econômica
O presidente eleito tinha a intenção de definir o primeiro escalão logo após receber o desenho do ministério, mas a contaminação da votação do Bolsa Família pelo julgamento do orçamento secreto bagunçou as coisas. Ele ganhou, porém, tempo para selar acordos com três partidos: o MDB de Tebet, o PSD do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o União Brasil, do relator dos 600 reais do Bolsa Família, o deputado baiano Elmar Nascimento, soldado de Lira. A tendência é repartir com esses aliados pastas e estatais responsáveis por obras. O senador mineiro Alexandre Silveira, do PSD, é o favorito para a Infraestrutura, ministério que conta com 17 bilhões de reais anuais. Renan Calheiros Filho, do MDB de Alagoas, está no páreo para Minas e Energia, embora não tenha ficado tão animado com o posto, conforme se ouve nos bastidores. Detalhe: o alagoano Lira é inimigo dos Calheiros e gostaria de ver Nascimento, o relator da PEC, no mesmo cargo. Para o Desenvolvimento Regional, caixa de 7 bilhões de reais, Lula nomeará um político do Norte ou Nordeste.
A distribuição de cargos permitirá ao petista tentar construir uma base parlamentar no Congresso. Gleisi Hoffmann, a presidente do partido, participa de quase todas as negociações políticas de Lula e tem dito que essa base terá 16 ou 17 legendas (eram dez na coligação eleitoral). Ao abrir a arca a neoaliados, o futuro presidente quer isolar social e politicamente o bolsonarismo, que foi derrotado nas urnas, mas segue vivo. O xadrez na arquitetura do governo mostra ainda o velho estilo conciliador do ex-metalúrgico, de reunir adversários em uma mesma mesa, como se verá adiante. Do que ele não abre mão é do domínio na área social e na economia.
Tebet pode ficar com o Meio Ambiente. Galípolo será o número 2 da Fazenda – Imagem: Fábio R. Pozzebom/ABR e Pedro França/Ag. Senado
Educação e Saúde são outros ministérios que Lula pretende manter longe das barganhas. Para o primeiro, a favorita é a governadora do Ceará, Izolda Cela. A pedagoga foi secretária de Educação da cidade de Sobral e do estado, cujas políticas são elogiadas internacionalmente. Sua nomeação seria um triunfo do senador petista eleito Camilo Santana, de quem era vice-governadora até março. Na posse, Lula assumirá o compromisso com a melhora da educação básica e a disseminação de escolas em tempo integral. Nos mandatos anteriores, a vedete tinha sido o ensino superior, sob a batuta de Fernando Haddad, futuro ministro da Fazenda. Haddad acredita, e disse nos últimos dias, que crédito bancário e educação são “eficazes” para a ascensão social dos mais pobres. Há razões financeiras por trás dos planos para o setor. Trata-se do fundo com o qual o governo federal apoia escolas municipais e estaduais. Graças ao Fundeb, jorrará dinheiro. Neste ano, o fundo tinha 30 bilhões de reais. No próximo, terá 40 bilhões. A quantia será crescente até 2026. A propósito, a verba anual do MEC é de 150 bilhões.
Na Saúde, há 162 bilhões de reais para o ano que vem, e aqui também se busca engordar o caixa, no embalo do estouro do teto de gastos em favor do Bolsa Família. O nome mais citado para a pasta é o de Nísia Trindade Lima, carioca que comanda a Fiocruz, fundação pública de pesquisa em ciência e tecnologia em saúde. Cientista social e socióloga, Nísia Lima destacou-se na pandemia, com seu Observatório da Covid. Em evento recente, Lula afirmou que o “SUS é sagrado” e que “a saúde passa a ser para mim uma coisa fundamental”. Foi além: disse que os mais pobres esperam meses na fila do sistema até aparecer uma consulta com especialista, enquanto os ricos podem descontar do Imposto de Renda os gastos com convênios e médicos. “É por isso que a gente precisa pensar numa reforma tributária para ver se consegue corrigir um pouco as injustiças centenárias que tem o nosso país”.
Novos anúncios de ministros, só depois de o Congresso concluir a votação da PEC que libera recursos para o Bolsa Família
Taxar mais os ricos, com mudanças no imposto cobrado sobre a renda e propriedade, é um plano de Lula para 2023, após o Congresso votar uma reforma tributária que altere impostos indiretos, aqueles incidentes sobre o consumo. Foi o que disse Haddad em evento na Febraban, a federação dos bancos, em 25 de novembro. O ex-prefeito tinha voltado dias antes ao Brasil de uma viagem com Lula pelo Egito e Portugal, durante a qual fora convidado para ser ministro da Fazenda, nomeação anunciada em 2 de dezembro. A reforma tributária em curso no Congresso é uma prioridade de Haddad, motivo pelo qual escolheu o economista Bernard Appy para o posto de assessor especial. Appy, integrante do primeiro governo Lula (do time de Antonio Palocci), é um dos mentores da reforma parada no Parlamento.
O braço-direito de Haddad na Fazenda, como secretário-executivo, será o economista Gabriel Galípolo, que presidiu o Banco Fator até 2021 e por isso tem sido errônea ou malandramente chamado de “banqueiro”. Nos tempos de universidade, Galípolo era do movimento estudantil e, segundo um colega da época, é “progressista e humanista”, alguém que acredita que o Estado tem um papel a cumprir na melhora de vida dos cidadãos e no crescimento econômico. Na campanha deste ano, circulou com Gleisi Hoffmann em encontros com empresários e executivos do setor financeiro. Devido ao perfil e à afinação com Haddad, o “mercado” reagiu com mau humor à sua escolha para a equipe econômica, com queda da Bolsa e alta do dólar.
Vieira foi uma escolha inesperada para o Itamaraty. Múcio é da “cota” dos militares – Imagem: Marcelo Camargo/ABR e Evaristo Sá/AFP
O mau humor piorou com a designação do economista e ex-senador petista Aloizio Mercadante para a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Em razão de sua personalidade, Mercadante não tem muitos fãs no PT. Até Lula dizia no passado que nunca o nomearia ministro. Mas o ex-senador foi importante na elaboração do programa de governo, na campanha e na equipe de transição. “Nós estamos precisando de alguém que pense em desenvolvimento, em reindustrializar esse País, em inovação tecnológica, na geração de financiamento ao pequeno, ao grande ao médio empresário, para que o País volte a gerar emprego”, comentou Lula, ao anunciar sua decisão sobre o BNDES. E deu uns recados ao que chamou de “glorioso mercado”. Um deles: “Vão acabar as privatizações”.
Na mídia e na Avenida Faria Lima, a designação de Mercadante foi considerada uma violação da Lei das Estatais, que impõe quarentena de 36 meses a dirigentes partidários. Mercadante comanda a Fundação Perseu Abramo, órgão de estudos do PT. Seus auxiliares dizem que não se trata de cargo remunerado, logo, não cairia na vedação legal. A colaboração no programa de governo seria “intelectual” e, por essa razão, também fugiria da restrição. Houve um precedente logo no início do governo Bolsonaro. Envolveu Fábio Almeida Abrahão, colaborador do programa de governo do PSL, o então partido do capitão, em 2018, e posteriormente indicado, e aprovado, para uma das diretorias do banco de fomento. De qualquer maneira, a Câmara deu uma força a Mercadante: os deputados reduziram a quarentena para 30 dias.
“Quem ganhou as eleições fui eu, e eu, obviamente, quero ter inserção nas decisões políticas e econômicas”, declarou Lula
Para outras duas instituições financeiras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, Lula quer mulheres na direção, segundo um interlocutor. Outra mulher, a economista Esther Dweck, ex-colaboradora de Dilma Rousseff, é cotada para o Ministério do Planejamento. No caso da Petrobras, Lula inclina-se pela engenheira Magda Chambriard, diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo entre 2012 e 2016. A associação dos engenheiros da estatal é contra, em razão de posturas privatistas de Chambriard no passado em relação ao Pré-sal. De qualquer forma, a configuração esboçada na área econômica mostra uma afinação com a visão de Lula. “Quem ganhou as eleições fui eu, e eu, obviamente, quero ter inserção nas decisões políticas e econômicas”, declarou o futuro presidente em 2 de dezembro. “Sei o que é bom pro povo, sei o que é bom pro ‘mercado’”, mas “eu ganhei as eleições para governar para o povo pobre.”
O esboço do primeiro escalão mostra o Lula conciliador de sempre e disposto a unir os diferentes. O ministro do Trabalho deve ser Luiz Marinho, que ocupou o mesmo posto no passado. O ministro da Indústria e Comércio tende a ser o empresário Josué Gomes da Silva, presidente da Fiesp. Para a Agricultura, o favorito é o senador Carlos Fávaro, ex-vice-presidente da Associação Nacional dos Produtores de Soja. Como contraponto, o petista pediu ao MST um nome para o Desenvolvimento Agrário, pasta que pode incluir no nome o termo “alimentação saudável”, ou algo parecido. O movimento indicou o engenheiro florestal Luiz Henrique Gomes de Moura, conhecido como Zarref. E haverá um segundo contraponto aos ruralistas, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, que deverá ser ocupado pela líder indígena Sônia Guajajara. A Funai, órgão encarregado da demarcação de terras indígenas, deve ser transferida de pasta (hoje está no Ministério da Justiça).
Josué Gomes da Silva é cotado para o Ministério da Indústria – Imagem: Suamy Beydoum/Agif/AFP
Sônia é deputada federal eleita pelo PSOL, partido com o qual Lula gostaria de contar no primeiro escalão, mas que definiria no sábado 17 se iria aderir ou não ao governo (reportagem à pág. 32). Na geopolítica interna, havia certo consenso psolista quanto ao apoio ao PT na campanha, mas não sobre ocupar cargos. Na segunda-feira 12, Gleisi conversou com o presidente da sigla, Juliano Medeiros, após a diplomação de Lula, e ofereceu ao partido o Ministério da Ciência e Tecnologia ou o dos Esportes. Guilherme Boulos, principal nome do PSOL, preferia o das Cidades, mas o PT cobiça a pasta, que tem tudo para ser uma vitrine político-eleitoral, com a volta do Minha Casa Minha Vida. Cotados para o posto: Edinho Silva, prefeito de Araraquara, e Paulo Teixeira, deputado.
Indefinições à parte, Lula delimitou uma espécie de “núcleo duro” do governo que controlará com mão de ferro. São áreas para as quais anunciou cinco ministros, Haddad incluído. O ex-deputado José Múcio Monteiro irá para a Defesa, com a missão de amansar os quartéis. O senador eleito Flávio Dino, do PSB, estará na Justiça para enquadrar a Polícia Federal e o golpismo das ruas bolsonaristas. O governador da Bahia, Rui Costa, do PT, tocará o dia a dia do governo, na condição de chefe da Casa Civil. Nas Relações Exteriores, entra o embaixador Mauro Vieira, ocupante do mesmo cargo no fim do governo Dilma.
A posse de Lula deverá reunir um número inédito de chefes de Estado em ocasiões similares por aqui, 17 presenças confirmadas até a quarta-feira 14. Nos três primeiros meses de governo, o petista deve ir a Argentina, Estados Unidos e China, segundo Vieira. O que não se sabia ainda é se a posse terá desfile em carro aberto, no Rolls-Royce presidencial. A equipe de Lula pediu o carro à Presidência, para que a segurança do petista examinasse as condições do veículo e vasculhasse eventual “armadilha”. Também não se sabe quando o petista vai morar no Palácio da Alvorada. A residência sofrerá uma varredura completa antes da mudança. Como Lula comentou nos últimos dias, o atual inquilino é “uma figura anômala, irracional”. Todo cuidado é pouco. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O núcleo”
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