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Adeus às armas

A equipe de Lula traça um plano para impedir que o arsenal na mão de civis seja desviado para o crime

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Imagem: Redes sociais e Diego Herculano/AFP
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Na manhã da segunda-feira 5, ao cumprirem em Pernambuco seis mandados de busca e apreensão da Operação Zona Cinza, que investiga a venda ilegal de armas de fogo e fraudes na concessão de registros de porte, agentes da Polícia Federal se surpreenderam ao encontrar 3 mil armas de diversos calibres – além de munições e acessórios – escondidas em uma residência e no Clube de Tiro do Agreste, ambos localizados no município de Caruaru. Já em sua segunda fase e acompanhada de perto pelo Supremo Tribunal Federal, a operação até agora resultou em quatro prisões e 11 ordens de suspensão de atividades de natureza econômica. Estas, em sua maioria, fecharam clubes de tiro que servem aos chamados CACs (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores), categoria que teve sua base ampliada de 218 mil a quase 700 mil registrados durante o atual governo. Segundo integrantes da equipe de transição de Lula, a maior apreensão desse tipo feita pela PF até agora pode ser a ponta do iceberg de um esquema de desvio que, facilitado pelas regras impostas por Jair Bolsonaro, vem aumentando em quantidade e qualidade o arsenal nas mãos de traficantes, milicianos e assaltantes de banco.

Conter o derrame de armas do período bolsonarista e recuperar a maior parte dos fuzis, pistolas, espingardas e metralhadoras hoje em mãos de civis sem fiscalização adequada será uma das tarefas emergenciais do governo Lula, segundo as discussões travadas no grupo de trabalho da transição que elabora propostas de Justiça e Segurança Pública. O relatório produzido pelo subgrupo que trata especificamente do controle de armas será entregue ao presidente eleito no sábado 10 e aponta que o governo Bolsonaro, ao permitir a ampliação do acesso, comércio e circulação dos mais diversos tipos de armas de fogo no País, editou até agosto 43 atos normativos, entre decretos, resoluções, instruções, portarias e projetos de lei: “Em sua quase totalidade, esses atos normativos representaram grandes retrocessos para a política de controle de armas e munições e não apresentaram qualquer fundamentação técnica que os justificassem. Em diversos momentos, até mesmo as considerações de órgãos centrais como a Polícia Federal e o Exército foram ignoradas”, diz o relatório.

Hoje, o número de CACs é superior ao efetivo das Forças Armadas ou da soma de todas as Polícias Militares estaduais

Além de elencar todas as modificações feitas por Bolsonaro e trazer “um diagnóstico dos principais impactos do descontrole armado no País”, o documento entregue a Lula sugere uma série de revogações de medidas adotadas pelo ­atual presidente que podem ser feitas por decreto já nos primeiros dias do próximo governo: “Para os primeiros cem dias recomendamos a revogação de diversos decretos que hoje facilitam o acesso a armas e munições. Sugerimos também medidas de controle para restringir de forma efetiva o acesso a armas de grosso calibre apenas e tão somente às forças militares ou de segurança pública estatal”, diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do grupo de trabalho. Ele lembra que qualquer decisão estratégica será tomada por Lula após um diálogo com a sociedade civil: “Estamos fazendo apenas e tão somente sugestões. Nos cem primeiros dias será feito o desenho do que vai ser a política pública para a área no decorrer dos quatro anos de governo”.

No que diz respeito ao armamento da população, o Brasil vive uma escalada explosiva. Segundo os dados levantados pelo grupo de transição, o arsenal nas mãos de civis cresceu em mais de 1 milhão de armas nos últimos três anos: “Em 2018, os acervos de CACs registrados no Exército e de pessoas físicas registrados na Polícia Federal contavam com 696.909 armas. Em julho de 2022, após apenas três anos de normas de facilitação de acesso vigentes, esse número saltou para 1.897.782 armas”, aponta o relatório. A primeira tarefa será tirar de circulação as armas de guerra e, para isso, o próximo governo conta com a ajuda do STF.

Em setembro, Edson Fachin, com o declarado objetivo de “evitar a violência política durante as eleições”, restringiu o acesso dos CACs a armamentos especiais, no primeiro freio à norma estabelecida por Bolsonaro que permite a aquisição de até 30 fuzis e similares por colecionador, atirador desportivo ou caçador. “Atribuem-se aos CACs, sem o suporte de razões empíricas e normativas, permissão para adquirir um elevadíssimo número de armas de uso restrito”, despachou o ministro. A futura colaboração a envolver o Executivo e o STF dependerá em grande parte do entendimento entre o próximo governo e o ministro Kassio Nunes Marques, que há mais de um ano fez pedidos de vista que paralisaram o julgamento de nove ações que contestam os decretos armamentistas.

Preso. Armado, Milton Baldin convocou atiradores para impedir a posse de Lula – Imagem: Redes sociais

O relatório da transição mostra que, em junho de 2020, havia 238.439 CACs registrados no Brasil. Em julho de 2022, esse número havia saltado para 673.818, contingente superior ao das Forças Armadas (357 mil) ou do somatório das Polícias Militares em todos os estados (406 mil). O fenômeno do crescimento aconteceu também com clubes e entidades de tiro esportivo, que saltaram, respectivamente, de 1.862 lojas e 1.092 associações em 2020 para 2.937 lojas e 2.095 associações em 2022. Para o sociólogo e especialista em segurança pública Ignacio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, desarmar os CACs será uma “tarefa central” para Lula: “É preciso reduzir essa janela que se abriu no governo Bolsonaro para, através dos CACs, fornecer armas a qualquer um. Já vemos diversos casos de desvio para a criminalidade, além de comércio fraudulento. Para piorar, não há nenhuma fiscalização”.

O sociólogo está certo, pois, segundo dados do próprio Exército, apenas 2,7% dos CACs registrados no País foram fiscalizados em 2022. Para o GT de controle de armas, esse é outro motivo de alerta: “O Exército informa que, em média, 112 armas por mês são extraviadas das mãos de CACs e outros cidadãos que tiveram acesso a algum tipo de arma ou munição. Mas, como somente 2,7% desse universo foi fiscalizado, é natural supor que o número pode ser muito maior”, diz Carvalho. Para se obter um diagnóstico preciso, acrescenta o advogado, será feito um recenseamento nacional. “Precisamos chamar esses CACs novamente para renovar suas licenças e portes de trânsito e entender o que está acontecendo com essas armas. Este será um dos grandes desafios do próximo governo.”

Em conversa com jornalistas, o senador eleito Flávio Dino, do PSB, um dos coordenadores do GT de Justiça e Segurança Pública do grupo de transição, também defendeu uma regulamentação mais restrita para CACs, clubes de tiro e entidades ou associações de atiradores desportivos. “Vai haver fechamento generalizado de clubes de tiro? Seguramente, não. Mas a atividade não pode ser algo descontrolado, não pode ser liberou geral. Todos os dias os senhores noticiam tiros em lares, em vizinhanças, bares e restaurantes por pessoas que possuíam registro de CAC. Mostra que esse conceito fracassou, e aquilo que fracassou deve ser revisto”, disse.

Segundo dados do próprio Exército, apenas 2,7% dos CACs registrados foram fiscalizados ao longo deste ano

Mas como recuperar as armas em poder dos CACs? Uma das ideias levadas a Lula é tornar anual e substancialmente mais cara a renovação de armas de grosso calibre. Outra é diminuir o tempo de validade dos registros de CACs pelo Exército de dez para três anos e o registro de portes de armas pela PF de dez para cinco anos. É estudada ainda uma nova campanha nacional de desarmamento e um programa de recompra e entrega voluntária. “Precisamos recolher as armas em circulação. Será proposta a criação de programas de incentivo à devolução voluntária com algum tipo de vantagem financeira. E também programas de recompra. As armas de uso compartilhado com as Forças Armadas ou forças policiais podem ser eventualmente recompradas por preço de mercado e utilizadas por esses mesmos aparatos de segurança pública”, diz Carvalho.

Difícil será convencer os radicais bolsonaristas a entregar voluntariamente suas armas. Na terça-feira 6, o empresário Milton Baldin, que possui registro de CAC e convocou atiradores para impedir a posse de Lula, foi preso no acampamento golpista de Brasília, por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Ainda que a campanha de desarmamento possa parecer ingênua, ela terá seu valor, avalia o advogado Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, que atua como consultor do grupo de transição: “É certo que o cenário de radicalização política no Brasil liderado pelo presidente e seu discurso de extrema-direita impactou demais. É preciso lembrar, porém, que a maior parte da população, segundo o ­Datafolha, é contra as medidas de afrouxamento de regras de compra e porte de armas mais potentes baixadas por Bolsonaro”. Já Ignacio Cano ressalta que programas de entrega voluntária de armas não costumam ter impacto satisfatório, mas pondera: “Mesmo assim, não é uma má ideia em termos simbólicos. É importante tentar aos poucos mudar essa cultura do armamentismo que reina hoje no ­Brasil para uma cultura de restrição às armas. Nada contra o programa de ­devolução voluntária, embora seu impacto, provavelmente, seja pequeno”.

Iniciativas. A equipe de Lula planeja fazer uma campanha nacional de entrega voluntária de armas. Dino propõe maior rigor na fiscalização dos clubes de tiro – Imagem: Felipe Cavalcanti/TJRJ e Gilson Teixeira/GOVMA

De acordo com o planejamento do grupo de transição de Justiça e Segurança Pública, no segundo ou terceiro ano de gestão o governo Lula se debruçará sobre tarefas mais complexas, como, por exemplo, criar mecanismos de incentivos fiscais para o setor que venham readequar as alíquotas dos impostos sobre armas, munições e acessórios, além de diminuir as vantagens tributárias concedidas por Bolsonaro para a importação dos mesmos. Outra medida sugerida é o aumento das restrições à publicidade do comércio de armas, sobretudo nas redes sociais.

Para além das revogações e medidas emergenciais, acrescenta ­Langeani, é preciso criar uma política pública de combate ao mercado ilegal de armas no País. “Isso passa por um fortalecimento dessa área na PF, mas também por melhorar a integração de sistemas e a articulação com os governos estaduais, que são responsáveis pela apreensão da maior parte das armas no Brasil.” Embora ressalte que “desvios de armas já aconteciam antes de Bolsonaro”, o ­advogado diz ser inegável que as mudanças realizadas por seu governo ampliaram as possibilidades de esquemas criminosos. Ele faz uma proposta ousada: “Em longo prazo, acreditamos que esse controle deve sair das mãos do Exército, não só porque tiro esportivo, caça e coleção nada têm a ver com a missão dessa Força, mas também porque a capacidade de fiscalização tem sido pífia. Nem mesmo a checagem de autenticidade de documentos e certidões é feita pelo Exército, gerando oportunidades de fraudes e desvios criminosos”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Adeus às armas “

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