

Opinião
O primeiro transe
A expressão desolada de Lionel Scaloni, treinador argentino, até então incensado por toda a crítica, resume a derrota dos hermanos para a Arábia Saudita


Nem bem saímos das eleições e somos atropelados por esta Copa do Mundo repleta de significados. A Copa do Mundo no Catar expõe, com grande intensidade, a expressão que caracteriza o futebol destes dias: o auge do detestável neoliberalismo que ruma para seus estertores. É muita desgraça em pouco tempo.
A decisão de se promover uma Copa no Catar foi tomada em 2010, sob a gestão de Joseph Sepp Blatter na Federação Internacional de Associações de Futebol (Fifa). Sabemos que Blatter e alguns dos outros altos dirigentes foram sendo, na sequência, expulsos da entidade sob acusações as mais escabrosas. Agora, passados 12 anos, nos vemos à frente de uma série de aberrações, que acabam por espelhar estes tempos de mundo em crise severa.
Se, no caso do Brasil, falou-se tanto da construção de grandes “arenas” – por sinal, que nome horrível para um espaço de expressão artística e esportiva –, o que dizer do caso do Catar, um país bem menor que o nosso? Vem daí o primeiro questionamento: o que será feito dos sete locais construídos num espaço tão exíguo?
As construções são oito, mas, curiosamente, uma delas, ao que se anuncia, é desmontável e será cedida a algum país carente. Aguardemos.
A contradição desta Copa explode ainda nas questões religiosas, com o radicalismo de suas regras em choque com o momento de preocupações urgentes da humanidade. Mas, queiramos ou não, o cenário deslumbrante das Mil e Uma Noites está montado e em curso. Foi dada, no domingo 20, a largada para este grande evento, cujo desenrolar vamos, quase todos, acompanhar ao longo deste mês vibrante.
O fato de a disputa mundial interromper o calendário dos principais torneios europeus – onde estão concentrados os participantes mais valorizados da competição – não é, a meu ver, um problema maior. Inclusive, porque o calendário facilita o da outra metade do mundo, justamente onde nós estamos. Por aqui, finalizamos todas as nossas disputas e, passada a Copa, começaremos um novo ano em todos os campos.
O que mais me mobilizou até agora foi a oportunidade de uma aproximação efetiva entre nações irmãs do nosso continente, especialmente o Brasil e a Argentina.
Temos a chance de ver o congraçamento de jogadores dos mais expressivos, que atuam juntos em seus clubes europeus, de serem adversários em suas seleções nacionais. É esse o caso do Messi e Neymar, companheiros no Paris Saint-Germain e agora em campo representando dois países cotados para vencer a Copa. Há, ainda, do mesmo time, M’Bappé, que já começou a brilhar pela França, outro país entre os favoritos.
Assim, vejo com entusiasmo uma fase de aproximação efetiva entre a Argentina e o Brasil, que será fundamental para o crescimento de toda a América Latina. Com a bola rolando, iniciado o torneio, a derrota da Argentina para a Arábia Saudita apimentou, de saída, o torneio do Catar. Foi inacreditável o impacto que o resultado causou. É como se não fossem comuns desfechos semelhantes na rodada de estreia de qualquer campeonato.
O fato é que a campanha dos hermanos nas etapas de classificação e amistosos iludiu a todos. A equipe argentina ficou chocada e entrou em transe em um jogo que começou vencendo. O time teve gols anulados, sem reclamações, e foi vítima dos deuses do futebol, como diria Nelson Rodrigues, ou dos demônios de um drama digno de um tango.
E cabe lembrar que a Copa nem sequer é um campeonato, mas um torneio sem returno e com fases eliminatórias, onde uma derrota aponta o caminho de casa. A expressão desolada de Lionel Scaloni, treinador argentino, até então incensado por toda a crítica, mostrou o que se passava entre os jogadores.
Precisando abrir a defesa da Arábia Saudita, o time continuou estatelado, insistindo com o excelente Di Maria, canhoto atuando pela extrema-direita trazendo a bola para o meio da área e facilitando o bloqueio adversário. Ao infortúnio argentino juntou-se uma jornada de incrível sorte para os sauditas. As animadas e alucinadas comemorações no vestiário foram, não à toa, fartamente mostradas. Será que a seleção argentina não dispunha de um ponta autêntico para forçar a abertura da defesa adversária? •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O primeiro transe”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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