Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Antes que eu me esqueça

Tinha um ministro da Saúde atrás do outro, tinha presidente dando Requinol pra ema, tinha gente sem ar em Manaus. Não tínhamos governo

Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Os dias foram passando, uns após os outros, formando semanas, meses, dois anos. Eu não colocava os pés no hall do meu apartamento. Nem mesmo o lixo diário era eu quem levava para um compartimento, no mesmo andar.

Tinha medo de abrir a janela, respirar fundo.

Os dias foram passando e eu enfurnado dentro de casa, usando praticamente três conjuntos de moletom, um azul marinho, um cinza e outro preto. Enquanto um lavava, o outro secava e o terceiro estava no corpo.

Lavava as mãos mais ou menos umas trinta vezes por dia, bem lavadas com Protex, depois álcool gel. Esfregava nos braços e nos antebraços. Depois anda esfregava as mãos molhadas no rosto.

Lavava as frutas e legumes um a um, com água e sabão, depois de deixar 20 minutos de molho na água com algumas tampinhas de água sanitária.

Não usava a mesma máscara duas vezes. Uma de manhã, uma de tarde e uma de noite. Depois, eram embrulhadas em sacos de plástico e iam para o lixo, quase hospitalar.

Portas, janelas, fechaduras, puxadores, acendedores, eram borrifados com Lysoform diariamente.

Os pacotes que chegavam do iFood e do Mercado Livre passavam pelo spray de álcool como se estivessem num lava-jato.

A gente não enxergava a bactéria, mas ela parecia estar no ar, voando sorrateira pronta para pousar no nosso nariz.

Quantas vezes não me senti febril, com falta de ar, sem paladar, sem olfato, puro delírio psicológico. Media a febre duas vezes por dia.

A televisão ficava o dia inteiro ligada na GloboNews. O giro pelo Brasil nos fazia crer que ninguém tinha escapado do pesadelo, daquela agonia.

Sonhava com a Cidade Ho Chi Min, o único lugar no mundo que ainda não tinha registrado nenhum caso.

De noite, o Alan Severiano aparecia no Jornal Nacional para dar os números da tragédia, que assustavam.

346 mortos em 24 horas!

Alguns amigos estavam entubados, uns isolados em UTIs de campanha, outros mortos.

A fotografia de covas abertas esperando corpos na primeira página do jornal quase me fez desistir de pagar o boleto da Folha de S.Paulo.

Os bares fechados, os restaurantes, os bufês infantis, os escritórios, as lojas, as escolas, tudo fechado deixava a cidade mais silenciosa e sem engarrafamento.

Os ônibus passavam vazios e o barulho de ambulâncias era quase que permanente, aqui no meu apartamento, bem em frente ao Hospital Sorocabana.

Começamos a pedir tudo por delivery. O supermercado, os remédios, os temperos do mercado, as esfirras da Paola, o frango desossado do Cacilda, o hambúrguer do Criminal.

Não tinha teatro, não tinha cinema, não tinha futebol, não tinha exposição.

Tinha um ministro da Saúde atrás do outro, tinha presidente da República dando Requinol pra ema, tinha ministro passando a boiada, tinha gente sem ar em Manaus, tinha CPI com altos índices de audiência no ar, tinha Paulo Gustavo morto.

Não tínhamos governo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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