Política
O medo das grades
Caso reeleito, Bolsonaro arquiteta um plano para investir contra o Supremo Tribunal. Não por ideologia


Era uma vez um presidente que vivia às turras com a Suprema Corte. Esta anulava algumas das principais medidas idealizadas pelo governo contra uma crise profunda. O governante sentia-se sabotado por juízes indicados em sua maioria por antecessores do partido rival. O mandatário concorreu à reeleição, venceu e, logo após ser reempossado, propôs ao Congresso ampliar o número de magistrados supremos. Caberia a ele indicar os novos, presumivelmente alinhados às suas ideias. Foi um alvoroço nacional. Os parlamentares não aprovaram o projeto, mas o tribunal entendeu que a maré não estava para peixe e passou a dar uma trégua ao chefe da nação, que encontrou mais facilidade para botar seus planos em prática.
Esta não é a história de uma distopia brasileira com Jair Bolsonaro triunfante nas urnas outra vez. São fatos reais na pátria para cuja bandeira o capitão bateu continência. O primeiro líder ocidental, embora amparado em causas nobres, que quis driblar a mais alta Corte por meio de sua ampliação foi Franklin Delano Roosevelt. O democrata havia sido eleito nos Estados Unidos, em 1932, e encontrara uma economia arrasada pela quebra da Bolsa de Nova York três anos antes. Contra a selvageria liberal de dar inveja a Paulo Guedes, decidira lançar um programa de obras públicas e de proteção social aos trabalhadores, o New Deal. E esbarrara numa Corte Suprema conservadoríssima (12 dos 16 presidentes anteriores eram filiados ao Partido Republicano, oposição a Roosevelt, e lotearam o Judiciário). Aliás, o tribunal norte-americano voltou a ter recentemente acentuada maioria desse naipe, graças a uma indicação de Donald Trump às vésperas da derrota para Joe Biden, e já apronta. Há quatro meses, revogou uma decisão de 1973 que legalizara o aborto.
Dois inquéritos em curso no STF tiram o sono do candidato à reeleição
Aqui, o bolsonarismo sonha com o controle do Supremo Tribunal Federal desde antes de chegar ao poder, em 2019. Era uma obsessão do “guru” do movimento, o finado Olavo de Carvalho. O furacão reacionário nas urnas neste ano animou o pessoal, sobretudo em razão de certos eleitos para o Senado, a Casa Legislativa responsável por aprovar, ou destituir, integrantes do STF. Vitoriosa no Distrito Federal, Damares Alves, ex-ministra da Família, é contra o aborto até nos casos permitidos por lei, como na gravidez decorrente de estupro. Sergio Moro, ex-ministro da Justiça eleito pelo Paraná, é a favor da prisão de condenados em segunda instância, liberada pelo Supremo em 2016 e proibida em 2019. O general Hamilton Mourão, vice-presidente que irá ao Senado pelo Rio Grande do Sul, acredita que o artigo 142 da Constituição abençoa golpe militar “legal”, interpretação rejeitada pelo STF em 2020. Repaginar a Corte será uma de suas bandeiras como senador, diz o próprio.
Não é, porém, uma visão ideológica que leva Bolsonaro a arquitetar uma investida contra o tribunal, na hipótese de conseguir mais quatro anos no Palácio do Planalto. O STF, de fato, colocou-se como um obstáculo a alguns de seus planos governamentais. Na pandemia, o presidente queria que a vida seguisse em frente e que a imunidade de rebanho (ou seja, a contaminação da população pelo vírus) resolvesse a situação (se brasileiros iriam morrer, azar. “Sou capitão do Exército”, disse em 2017, “a minha especialidade é matar”). O Supremo não deixou. Autorizou governadores e prefeitos a fechar estabelecimentos comerciais e escolas. Mais tarde mandaria o Senado instalar uma CPI da Covid, cujo relatório final imputou nove crimes a Bolsonaro.
Pedra no sapato. A Corte tem sido um muro de contenção das ambições bolsonaristas – Imagem: Nelson Jr./STF
Para proteger-se de investigações e escapar de eventual punição por crimes, o capitão deseja acuar o Supremo. Bolsonaro tem medo de dois inquéritos em curso no tribunal: o 4.781, sobre as milícias digitais bolsonaristas, e o 4.874, a respeito de uma quadrilha de carne e osso sabotadora da democracia. Duas engrenagens em que é impossível não ver no topo, como capo e beneficiário, o próprio presidente. Ele já disse temer o mesmo destino de Janine Áñez, a golpista boliviana condenada depois de perder a eleição para o grupo do golpeado Evo Morales.
Em uma entrevista de 7 de outubro, o capitão disse que haviam chegado a ele propostas de expandir as atuais 11 vagas do Supremo e que estudaria a ideia após a eleição. Naquele dia, esculhambou o ministro Alexandre de Moraes, relator no STF dos dois inquéritos que lhe tiram o sono. São apurações que poderão ter um desfecho rápido, caso Bolsonaro perca nas urnas. É o que teoriza um colaborador da campanha de Lula. O petista nomearia um procurador-geral da República para o lugar de Augusto Aras, cujo mandato acaba em setembro do próximo ano, e o novo “xerife” partiria para cima do bolsonarismo. Os dois inquéritos correm no Supremo sem a cooperação de Aras, mas só o Ministério Público pode pedir à Justiça a condenação criminal de alguém. As apurações conduzidas por Moraes e delegados da Polícia Federal servem para preparar o terreno às denúncias. Mas sentenças, não.
Escolha. Se o Brasil der um novo mandato a Bolsonaro, os ministros da Corte serão colocados na linha de tiro – Imagem: Fernando Frazão/ABR
Ao atacar Moraes no dia 7, o presidente disse: “O que esse cara fez é um crime. Meu ajudante de ordens, em especial o Cid, que eu tenho quatro, é um cara de confiança meu”. Mauro César Barbosa Cid é um tenente-coronel do Exército que chefia o time de ajudantes de ordens do Planalto, equipe que carrega a pasta do presidente e faz ou recebe telefonemas em nome dele, entre outros serviços, e pode ser o elo de uma “conexão Miami” de financiamento de atos antidemocráticos realizados pelos apoiadores do chefe. Seu pai é um general amigo do presidente, Mauro Cesar Lourena Cid. No início do governo, o capitão colocou o general à frente do escritório de Miami da Apex, a agência de promoção de exportações. A cidade é um dos redutos da extrema-direita norte-americana. Mas, sobre essa conexão internacional, se falará daqui a pouco. De volta ao ajudante de ordens.
O tenente-coronel teve o sigilo bancário quebrado por Moraes depois de um pedido de 13 de junho da Polícia Federal. Ao examinar as finanças do militar, a PF descobriu que ele pagou o convênio médico de um parente de Jair e Michele Bolsonaro e, também, as tarefas de uma tia da primeira-dama que cuida da filha do casal, Laura, conforme a Folha de S.Paulo de 26 de setembro. Curioso: Fabrício Queiroz, o ex-PM amigo de Bolsonaro, no passado quitou mensalidades escolares e plano de saúde da família do primogênito do capitão, Flavio, quando este era deputado estadual no Rio de Janeiro. O dinheiro usado antes por Queiroz, então funcionário de Flavio, era público? E a grana usada agora por Cid para pagar despesas pessoais do clã presidencial, era? É o que a PF tenta descobrir.
O interesse da polícia pela conta bancária do tenente-coronel nasceu da análise das comunicações do investigado. Ligações, mensagens e e-mails do militar foram avaliados em um inquérito, o 4.878, que apurou o vazamento por Bolsonaro, em 4 de agosto do ano passado, de um relatório policial sigiloso sobre um ataque hacker ao Tribunal Superior Eleitoral na eleição de 2018. Cid ajudou a vazar. Ligou para um irmão, Daniel, que mora nos Estados Unidos e é chefe de engenharia de software e de produtos em duas empresas. Pediu que a papelada fosse colocada em um servidor. Daniel a publicou no “brasileiros.social”, criado por ele nos EUA para abastecer postagens em uma rede social similar ao Twitter, o Mastodon. A PF concluiu que Bolsonaro, Cid e o deputado Filipe Barros, do PL do Paraná, cometeram crime de vazamento de documento público sigiloso ao qual só tiveram acesso em razão dos cargos estatais que ocupam.
Diante do risco de perder votos, Bolsonaro parou de falar no assunto. Mas…
A PF havia antes esbarrado em Cid naquele inquérito sobre a realização de atos antidemocráticos no País, o primeiro deles no Dia do Exército (19 de abril) de 2020. Nessa apuração, foram descobertas mensagens do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos para o ajudante de ordens, nas quais o remetente pedia golpe militar. Santos está foragido da Justiça, possivelmente nos EUA. Ao autorizar uma batida policial e quebrar os sigilos bancário e comunicacional de oito empresários golpistas há dois meses, Moraes levou em conta uma análise feita por um juiz auxiliar de seu gabinete no Supremo, Airton Vieira, que menciona Cid. No documento, Vieira dá a entender que o tenente-coronel pode ser uma peça do “núcleo financeiro” por trás das milícias digitais e da quadrilha de carne e osso que sabota a democracia.
Nos órgãos de inteligência do governo, há quem suspeite que Cid seja receptor de dinheiro que o pai arrumaria, em nome do presidente, com grupos radicais em Miami, na Flórida. Um dos senadores do estado é um linha-dura contra Cuba e Venezuela, Marco Rubio. Nos tempos de Trump, Rubio tinha forte influência na política externa dos EUA para a América Latina. Eduardo Bolsonaro, o filho do presidente a quem cabe articular as relações internacionais do pai, esteve com o parlamentar em Miami, em março de 2020. Até postou na época, no Twitter, uma foto ao lado do senador e escreveu: “Ele dá o tom quando o assunto é Cuba, Venezuela e América Latina dentro do Congresso dos EUA”. Um mês depois, o pai de Eduardo comandava um ato antidemocrático cercado por apoiadores no Dia do Exército. Havia dólar de Miami por trás do evento?
Calo. Moraes, o inimigo número 1, cerca Cid, o ajudante de ordens do capitão – Imagem: Antonio Augusto/TSE e Alan Santos/PR
Dúvidas à parte, o plano presidencial de acuar o Supremo promete tumultuar o Congresso. O comandante do Senado, Rodrigo Pacheco, equilibrista entre governismo e oposição, é contra ampliar o número de cadeiras. O da Câmara, Arthur Lira, decididamente bolsonarizado, acha que o assunto não é adequado “neste momento”. Ou seja, pode ser em outro. O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, é a favor de algum tipo de contenção do STF. Pode até não ser o aumento da quantidade de ministros, mas a fixação de mandato. Hoje, os juízes se aposentam aos 75 anos. Por essa regra, ou Lula ou Bolsonaro poderá indicar, em 2023, dois magistrados, para as vagas de Rosa Weber, presidente da Corte, e Ricardo Lewandowski.
Diante da defesa explícita de Bolsonaro por mudanças no Supremo, o comitê de campanha receou que o presidente perdesse votos de eleitores moderados e defendeu a mudança de assunto. Nos últimos dias, o capitão passou a dizer que a imprensa havia inventado tudo, essas mentiras de sempre que ele conta. Disse até que gostaria de conversar com Rosa Weber. Puro fingimento. Em caso de reeleição, o STF, um dos grandes responsáveis pelo atual estado de coisas, em razão de suas ações e omissões durante o impeachment de Dilma Rousseff e a caçada da Operação Lava Jato a Lula, estará na linha de tiro. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O medo das grades “
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