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A obra retumbante

Por trás da reabertura da instituição, fechada nove anos atrás, está uma aventura da engenharia e do restauro

A obra retumbante
A obra retumbante
Escavações. A construção de um novo edifício, abaixo do prédio do século XIX, envolveu a aplicação de 150 injeções de calda de cimento para estabilizar o solo - Imagem: GOVSP
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Em 2013, faltava menos de um mês para o Dia da Independência quando o Museu do Ipiranga foi repentinamente fechado, sob o risco de desabar. A deterioração não chegava a ser surpreendente em um país que já viu, algumas vezes, museus arderem em chamas. O que surpreende agora, e positivamente, é a sua reconstrução – literal e simbólica.

Embora tenha como pano de fundo ­disputas políticas, a milionária empreitada tem um quê dos famosos versos de Mário Quintana: Eles Passarão/ Eu Passarinho. E o que fica da obra, iniciada em 2019 e entregue no dia 6 de setembro, é um museu capaz de ajudar na compreensão do passado brasileiro e um bem cultural valoroso. O espaço deve tornar-se, ainda, um marco da arquitetura e da engenharia em São Paulo.

O coração da reforma foi a construção de uma nova área, de 7 mil metros quadrados, abaixo do edifício histórico, que também tem 7 mil metros quadrados. Como o museu foi erguido numa colina, entendeu-se ser possível construir uma nova entrada, no nível do jardim francês, sem que isso fosse um obstáculo à antiga fachada.

Possível era. Simples, não. Por isso, entre as várias aventuras que uma obra desse porte guarda, algumas das mais espantosas residem nos desafios ligados à engenharia. “Tivemos desafios de grande porte: a construção abaixo do prédio histórico, os riscos, o prazo e o custo”, resume o engenheiro Frederico Martinelli, coordenador-geral do restauro e da ampliação. No meio do caminho, para tornar a aventura ainda maior, houve a pandemia. “A certa altura, o cronograma era tão apertado, eu já queria que a obra fosse para comemorar o tricentenário”, brinca.

“A certa altura, eu queria que a obra fosse para celebrar o tricentenário”, brinca Martinelli

O ponto de partida era um edifício pesado e baixo – com quatro pavimentos –, insuficiente para abrigar o acervo de 3,5 mil obras e incapaz de atender às exigências de um espaço cultural contemporâneo. A fundação do prédio já havia provado sua resistência – afinal de contas, está ali desde o século XIX – e, portanto, parecia apta a aguentar uma escavação.

Para tentar dimensionar, para jornalistas e visitantes, o tamanho da encrenca, o engenheiro tira sempre os mesmos números da manga: foram removidos 35 mil metros cúbicos, ou 2 mil caminhões de terra. Como o terreno, dadas as suas características de umidade e volumetria, era sensível, foi preciso tomar medidas, nas palavras de Martinelli, “extremas”: o solo recebeu 150 injeções de calda de cimento até 25 metros abaixo da superfície para suportar a intervenção.

No novo espaço, de vidro e metal, há banheiros, fraldário, café, loja de ­souvenirs, salas administrativas e um auditório. A ligação com o antigo prédio se dá por meio de um elevador e de escadas rolantes às quais se chega cruzando um túnel que, feito um portal dos contos de fadas, nos leva a um outro tempo.

Da escadaria do prédio-monumento foram retiradas – uma a uma, e numeradas – as pedras de mármore de ­Carrara, que, recuperadas e limpas, ressurgem novinhas em folha. Depois de subi-la, o visitante depara-se, nas laterais do torreão central, com dois bandeirantes esculpidos em tamanho gigante.

Passado e presente. Durante o restauro, o célebre quadro Independência ou Morte teve de permanecer no prédio, entre entulho e barulho, porque, de tão grande, não passava pela porta – Imagem: Museu do Ipiranga/USP

Logo adiante, no alto das escadas que levam às salas expositivas, há outros bandeirantes, em tamanho menor, mas em idêntica postura de conquistadores. Ao lado deles e de uma estátua de Dom Pedro I, vê-se o quadro Ciclo da Caça ao Índio. Tudo isso é tombado pelos patrimônios municipal, estadual e federal e não podia, portanto, ser modificado.

O peso e o desconcerto gerados por essas imagens são, porém, contemporizados por um cuidadoso material multimídia que contextualiza o que ali se vê – não custa lembrar que, em 2021, atearam fogo à estátua do Borba Gato e que a velha iconografia da história está posta em xeque (ler texto sobre a série Independências à pág. 60).

Mas nem só de memórias desconfortantes se faz esse passado. Do ponto de vista da engenharia e da arquitetura, o passado provoca, sobretudo, fascínio. “O cimento só começou a ser construído no Brasil de maneira consistente a partir de 1920, ou seja, o prédio foi erigido sem cimento. Tudo foi construído com madeira, cal, areia e tijolo”, descreve Martinelli. “Como não havia concreto, as lajes são sustentadas por soalhos de madeira, feitas com toras de árvore alinhadas em T.”

As paredes são responsáveis por sustentar toda a estrutura e, não à toa, têm espessura de 50 centímetros a 1 metro – hoje, uma parede não passa dos 20 centímetros. Para aliviar o peso, o engenheiro italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi, responsável pelo projeto original, iniciado em 1888, usou taipa nos últimos pavimentos.

“Ele desconfiava que o prédio estava ficando pesado demais e resolveu fazer algumas paredes mais leves”, diz ­Martinelli. Daquilo que segue visível, chamam especial atenção as 450 janelas e portas de enormes batentes, agora totalmente restauradas, assim como o piso de ladrilho hidráulico, refeito com ladrilhos originais e outros recriados.

Formado em engenharia pela Mauá, em 1979, e mestre pela Escola ­Politécnica da USP, Martinelli diz que, antes desse projeto, não só tinha pisado uma única vez no Museu do Ipiranga, numa excursão escolar, como não tinha conhecimento específico em prédios históricos. Sua especialidade é a gestão de grandes obras – de shoppings a conjuntos habitacionais.

“Como se esvazia um museu?”, se perguntava a restauradora antes de a obra começar

Até agora, parece lhe soar espantoso que, neste caso, enquanto a obra aconteceu, três quadros permaneceram ali. Um deles é Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, que, devido às suas dimensões (415 x 760 cm), não passaria pela porta. As outras duas são as também enormes A Conversão do Apóstolo Paulo a Caminho de Damasco e Partida da Monção.

As três pinturas passaram, assim como o prédio, por um complexo processo de restauro e depois ficaram protegidos por uma estrutura de madeira.

Embora o restauro desses quadros grandiosos tenha sido uma tarefa e tanto, ela não foi maior do que a lida com o acervo completo, que inclui papéis e miudezas. “Desde o fechamento, a gente tinha um desafio enorme, que era tirar tudo dali. Como se esvazia um museu? Isso nunca tinha sido feito no Brasil”, diz Teresa Cristina Toledo de Paula, supervisora da seção técnico-científica de conservação.

Nos editais de transferência do acervo, era preciso, conta Teresa, não apenas listar, mas precificar item por item. “Foram dois anos para tirar tudo dali e mandar para diferentes imóveis”, rememora, como se ainda não acreditasse que deu tudo certo. Para receber tanto material, foi preciso alugar vários imóveis, separar as coleções e, depois, contratar diferentes ateliês de restauro.

Os desafios, como tenta explicar ­Teresa, eram de naturezas muito diversas. Ela se lembra, por exemplo, de um estojo de joias, de não mais de 20 centímetros, em formato de jacaré, que ninguém conseguia concluir como recuperar. “Ele passou por várias mãos”, diz. “A gente lidou com materiais muito sensíveis. Você tem, por exemplo, uma flor de tecido que acha que recuperou e, no dia seguinte, a flor aparecia murcha.”

Todo esse mundo de coisas enormes e minúsculas voltou para o prédio em junho: “A partir daí, fomos colocando as coisas no lugar em que cada uma deveria estar”.

Funcionária concursada, Teresa começou a trabalhar no Museu do Ipiranga aos 29 anos. Estava lá quando o museu fechou e se lembra de ter batido de porta em porta para pedir ajuda para proteger Independência ou Morte do teto sob risco de desabamento. “É toda uma vida”, diz, sem conseguir disfarçar a emoção com o longo percurso – dela própria e do museu que agora revive. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A obra retumbante “

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