Política

assine e leia

Cúmplices da destruição

Governos estaduais, deputados e senadores da região são sócios na devastação, mostra estudo

Cúmplices da destruição
Cúmplices da destruição
Imagem: Douglas Magno/AFP
Apoie Siga-nos no

Na segunda-feira 5, Dia da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo ardia em chamas. Em cada um dos quatro primeiros dias de setembro foram contabilizados mais de 3 mil focos de queimadas. Nenhuma novidade. O mês de agosto havia batido o recorde de incêndios em 12 anos, parte da escalada de destruição que tomou vulto a partir da posse de Jair Bolsonaro. Em 2021, a região teve o maior nível de desmatamento desde 2006 e, nos três primeiros anos do governo, as invasões em terras indígenas cresceram 212%, comparadas ao mesmo período anterior. O número de assassinatos de indígenas foi o maior desde o início da contagem, em 2003. Os dados integram um levantamento do Observatório do Clima e reforçam o que as informações do guia Amazônia Legal e o Futuro do Brasil: um Raio X dos Estados da Região Entre 2018 e 2022. Lançado no fim de agosto pela plataforma de monitoramento Sinal de Fumaça, o documento traça uma radiografia que reflete a realidade da região no governo Bolsonaro, com informações sobre meio ambiente, violência e atuação das bancadas federais dos nove estados da Amazônia Legal, além da tentativa de governos estaduais de reproduzir localmente projetos antiambientais em tramitação no Congresso.

O documento destaca quatro projetos que, mesmo sem ter sido aprovados definitivamente por deputados e senadores, incentivam crimes na Amazônia Legal. Definidos como pacote da destruição, fazem parte do rol o PL da Grilagem, que altera o marco legal da ocupação das terras públicas federais, o projeto que facilita licenças ambientais para a construção de obras de saneamento básico, estradas e portos, o PL 490, que dispõe sobre a demarcação de terras indígenas, proposta similar ao marco temporal à espera de votação no STF, e o PL 191, que autoriza a mineração em terras indígenas. Os dois primeiros foram aprovados na Câmara e aguardam votação no Senado, o 490 passou pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mas ainda não foi votado em plenário, e o 191 teve o pedido de urgência aprovado pelos deputados e aguarda a criação de uma comissão especial.

Enquanto os estados copiam leis federais que protegem o crime, as bancadas federais alinham-se a Bolsonaro

Informações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais dão conta de um aumento de 21,97% no desmatamento na Amazônia Legal entre 2020 e 2021. De acordo com o Sistema de Alerta de Desmatamento do Imazon, entre janeiro e maio deste ano, foram derrubados 3.360 quilômetros quadrados de floresta, o equivalente a 2 mil campos de futebol, a maior devastação registrada nos últimos 15 anos. “Mesmo que nenhum dos projetos tenha virado lei ainda, eles tramitam muito rapidamente no Congresso. A tramitação gera uma insegurança jurídica, uma zona cinzenta, e o cara sente o clima de impunidade”, avalia Rebeca Lerer, coordenadora do guia Amazônia Legal e o Futuro do Brasil. Dos 91 deputados federais dos estados “amazônicos”, 66,08% votaram com o governo em projetos danosos, uma lista que inclui a regularização de terras griladas, o afrouxamento do licenciamento ambiental e o sinal verde para a invasão e mineração em terras indígenas. O estudo também mostra que alguns estados tentam reproduzir localmente esses projetos, por meio de medidas que facilitam a atuação criminosa na Amazônia. “Existe uma ambiguidade das bancadas, que fazem discursos muito bonitos nas conferências internacionais, se colocam como oposição a Bolsonaro quando convém, como no caso da CPI da Covid, mas, na prática, têm sido cúmplices da boiada. Em alguns estados isso foi deflagrado com a participação ativa de governadores bolsonaristas, como no Acre, Rondônia, Roraima e Mato Grosso. Eles criaram versões locais das próprias boiadas”, acusa Lerer. A pesquisadora cita a lei que autorizava o garimpo em terras indígenas em Roraima, considerada inconstitucional pelo STF um ano depois de ter sido aprovada pela Assembleia Legislativa.

No Acre, o estado mais bolsonarista do País, existe o risco iminente da construção da nova Estrada do Pacífico, que ligaria Cruzeiro do Sul a Pucallpa, no Peru. O projeto tramita na Assembleia Legislativa e, se aprovado, vai afetar mais de 220 quilômetros quadrados da Reserva Extrativista Chico Mendes, além de extinguir o Parque Nacional da Serra do Divisor, uma ameaça às terras indígenas Nukini e Nawa. “O projeto libera fazendas, extração ilegal de madeira e contrabando. Essa flexibilização faz parte de um projeto político-econômico da bancada no Congresso, alinhado à atuação de deputados estaduais. É uma política da morte”, dispara o indígena ­Tarisson Nawa, colaborador do guia. “Antes, você ia na cidade e o primo do prefeito ou o amigo de infância dele eram madeireiros, havia a troca de favores, o tráfico de influência. Hoje, o madeireiro virou prefeito. Os próprios agentes da cadeia do desmatamento estão no poder.”

Amanda Michalski, professora e assessora da Comissão Pastoral da Terra em Porto Velho, ratifica o alinhamento do governo de Rondônia com a política antiambiental de Bolsonaro. “Temos uma bancada federal que se esforça para ampliar o espaço e a territorialidade do capital agropecuário e o agronegócio, assim como a liberação da mineração em terras indígenas e cada vez mais agrotóxicos que contaminam os nossos solos, corpos d’água, ar e o nosso sangue. Em nível estadual, temos uma bancada alinhada à federal, que corrobora com o aumento dos conflitos socioterritoriais e ambientais.” Em Roraima, entre 2018 e 2021, a área impactada pelo garimpo ilegal na terra yanomâmi dobrou de tamanho e alcançou 3.272 hectares. Consequência: mais desmatamento e destruição dos rios e uma explosão dos casos de malária e outras doenças entre os indígenas. Também está em vigor a Lei 1.701, contestada na Justiça, que proíbe os órgãos de fiscalização e a Polícia Militar de destruir bens particulares apreendidos em operações de combate ao crime ambiental.

Estudo inédito realizado pela ­Forensic Architecture e o Climate Litigation ­Accelerator revela a ligação direta entre o governo Bolsonaro, o ecocídio na Amazônia e a crescente violência contra as comunidades indígenas. A investigação recorreu a imagens de satélite para rastrear os efeitos das políticas ambientais no local e constatou o assassinato de 176 indígenas só no terceiro ano do governo Bolsonaro, estatística que contribui para colocar a região como uma das mais violentas do País. Dos 5.725 conflitos no campo dos últimos três anos, 2.329 foram na Amazônia Legal, segundo a Comissão Pastoral da Terra, o maior número em toda a série histórica, iniciada em 1985. As maiores vítimas são os indígenas, quilombolas, posseiros e sem-terra. Empresários e fazendeiros são apontados como os principais responsáveis pelos crimes. Das 30 cidades mais violentas, dez estão na região, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A taxa de violência letal na Amazônia é 38% maior do que a média nacional.

“A degradação ambiental caminha ao lado da violência”, diz Carlos Durigan, da Wildlife Conservation Society

No Amazonas, o Vale do Javari foi manchete mundial, em junho passado, após os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips. A área reúne o maior contingente de índios isolados do mundo, alvo de cobiça do crime organizado, com a anuência de órgãos públicos, como a Funai e o Ibama. Só no primeiro semestre deste ano, foram desmatados 2.285 quilômetros quadrados da floresta no estado. “A degradação ambiental caminha ao lado da violência, seja ela sobre povos indígenas e comunidades tradicionais, seja sobre o nosso patrimônio natural. As frentes criminosas se expandem sobre territórios de vida de comunidades indígenas e ribeirinhas, terras públicas e ainda corpos d’água e suas margens”, denuncia o geógrafo Carlos Durigan, diretor da Wildlife Conservation Society Brasil, em Manaus.

Outro estado onde se acumulam casos de violência é o Maranhão. Na madrugada do sábado 3, dois indígenas da etnia Guajajara foram assassinados em Arariboia. A suspeita é de que o crime tenha relação com recentes conflitos com madeireiros da região, nova fronteira do agronegócio e da mineração. Dos 18 deputados federais maranhenses, 14 fazem parte da bancada ruralista, proporção ainda maior na Assembleia Legislativa, onde 40 dos 42 deputados estaduais têm vinculação com o setor. “O crescimento desordenado da economia sobre a Amazônia maranhense, a partir de ações desencadeadas pelo próprio Estado, teve como resultado concreto situações de brutalidade e selvageria em todo o território. O desmatamento caminha com a violência no campo e existe toda uma cadeia criminosa por trás dessas ações, de grilagem de terra e de apropriação de recursos naturais por grupos econômicos poderosos”, afirma Carlos Cabral, advogado popular no Maranhão. Ter uma bancada majoritariamente rural não é privilégio do Maranhão, é uma característica dos nove estados da Amazônia Legal. Dos 91 deputados federais, 56,66% fazem parte da bancada ruralista, enquanto no Senado o domínio é ainda maior: 74% dos 27 senadores são vinculados aos produtores. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cúmplices da destruição”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo