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A Academia nos tempos do golpe

A opção é sempre em torno de uma sociedade justa e contemporânea ou da manutenção da herança colonial

A Academia nos tempos do golpe
A Academia nos tempos do golpe
Foto: NELSON ALMEIDA / AFP
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A manifestação de 11 de agosto no largo que abriga a Velha e Sempre Nova Academia de São Francisco despertou minhas recordações dos tempos de tormentos e desventuras que antecederam e se seguiram ao malfadado golpe de 1964.

No início dos anos 60, a sociedade brasileira vivia uma era de saudável e promissora agitação política. Na época batizado como “luta de classes”, o fenômeno era decorrência inevitável de quatro décadas de industrialização, modernização econômica e rápida transformação social. O progresso material das sociedades modernas suscita inconvenientes e transtornos, mas é mobilizador de energias e de ideias. Os sindicatos, as associações de classe e as organizações estudantis fervilhavam. Os centros acadêmicos, a UEE e a UNE não davam carteirinha para estudante pagar meia-entrada no cinema. Participavam ativamente do debate nacional.

Ainda não se sabe se, a despeito ou por conta do jogo estratégico entre as duas grandes potências, o pós-Guerra foi generoso com alguns países da periferia, sobretudo com o Brasil. Entre seus pares, o país tropical era líder no campeonato de taxas de crescimento e de incorporação de novas atividades e de trabalhadores ao mundo da indústria e das cidades. Havia entusiasmo e, provavelmente, muita ilusão. Mas já disse alguém que as ilusões são necessárias e, em muitos casos, estimulantes.

Era então possível e razoável imaginar o País cada vez mais próximo de uma sociedade justa e contemporânea, expurgada­ da herança colonial e de seus humores subalternos. Alguns chamavam essa esperança de socialismo. Outros almejavam que a utopia se assemelhasse às condições de vida e aos padrões de convivência que estavam em construção na Europa Ocidental com o avanço do Estado do Bem-Estar Social. Na outra ponta do espectro político estava a malta do fazendão subdesenvolvido que combinava cosmopolitismo americanista com a reconhecida ojeriza pela difusão da luz elétrica e da água encanada.

Seja como for, a bandeira das forças progressistas foi desfraldada na defesa das reformas de base – agrária, urbana, bancária, trabalhista e previdenciária. As hostes conservadoras e reacionárias, que nunca abandonaram a luta contra o projeto nacional de industrialização, brandiam os chavões da ameaça comunista, do ouro de Moscou, da “cubanização” do Brasil.

Mais de 50 anos depois é recomendável alguma frieza na análise: como todos os periféricos, éramos – à esquerda e à direita – protagonistas dos conflitos que se desenvolviam nos palcos globais da Guerra Fria.

No microcosmo da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a controvérsia política e ideológica caminhou, como em toda parte, para a radicalização. Em 1963, o presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, Oscarlino Marçal, e Pedro Celidônio Gomes dos Reis organizaram o chamado Seminário do Instituto de Estudos Brasileiros, o Iseb, uma das matrizes do pensamento progressista e nacionalista da época. Nas palestras, a Sala dos Estudantes ficava à cunha.

Nesse mesmo ano, a direita rompeu a estrutura partidária tradicional da Academia – formada pelo Renovador, Independente e Socialista. Foi, então, criado o Partido de Representação Acadêmica. Nele ingressaram desde os moderados e civilizados – os que apenas flertavam com soluções extraconstitucionais – até os brucutus que pregavam abertamente a dizimação política e física dos “comunas” e esquerdistas de todo o gênero. A turma do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) ensaiava suas proezas.

A esquerda reagiu com a Unidade. Os partidos Independente, Renovador e Socialista juntaram-se em torno da candidatura de João Miguel. Eleito com grande diferença de votos, João Miguel desenvolveu sua campanha escorado num programa – As Razões Fundamentais da Unidade – aprovado pela coligação partidária. (Este texto-manifesto, elaborado a muitas mãos, talvez ainda fosse útil no Brasil de hoje.)

O golpe militar de l º de abril surpreendeu João Miguel em Brasília. Tratava de assuntos de interesse do Centro Acadêmico. Logo passou a ser procurado pelos fardados que prometiam salvar a democracia. Nobre propósito que, infelizmente, para sua consecução exigiu a instauração de uma ditadura que iria durar 21 anos.

João escapou para Goiânia. Seu tio, o advogado Felício Simão, negociou seu retorno com o ex-colega e amigo Alfredo Buzaid.

Buzaid era um dos corifeus do pensamento golpista e então diretor da Faculdade. Ficou combinado: o ex-presidente do XI de Agosto – deposto numa Assembleia irregular convocada pelo vira-casaca Elicio Decresci – se apresentaria, mas não seria preso.

João Miguel voltou a São Paulo e entrou em “cana”. Dois meses depois, seria proclamado campeão do torneio de xadrez intercelas realizado no Dops. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A Academia nos tempos do golpe”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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