Política
Os escorpiões
Os golpistas Eduardo Cunha e Michel Temer entregam-se ao próprio ethos e agem contra Lula na eleição


É da natureza do escorpião picar o sapo na travessia do rio, certo? Há por aí uns escorpiões-golpistas que não disfarçam o ethos. Michel Temer, de 81 anos, e Eduardo Cunha, de 64, empenham-se para atrapalhar Lula e o PT na eleição. O primeiro, ghost writer de cartinhas arrependidas de Jair Bolsonaro, busca impedir a vitória petista em turno único. É uma tentativa de valorizar o MDB para negociar apoio futuro, e o capitão agradece se a disputa chegar ao segundo turno. Já Cunha acaba de conseguir uma liminar para concorrer de novo a deputado e resolveu que sua bandeira de campanha jamais será vermelha. Será a antipetista de Bolsonaro, a quem apoia publicamente.
O ex-deputado não pertence mais ao MDB do velho parceiro Temer. Filiou-se, em março, ao PTB de Roberto Jefferson. E não se lançará no pleito (caso a liminar sobreviva) pelo Rio de Janeiro, sua terra natal e pela qual se elegera deputado federal quatro vezes. Agora, quer concorrer por São Paulo, que ele diz ser “o estado mais importante” e onde “tudo o que acontece reverbera”. Em 30 de julho, participou da convenção do partido Republicanos que oficializou a candidatura de Tarcísio de Freitas ao governo paulista. Freitas foi ministro de Bolsonaro, é o nome do capitão na disputa. Se a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e a Fiesp, a federação das indústrias paulistas, preparam manifestos contra o presidente, Cunha não está nem aí. “Manifestos ridículos”, desdenhou a uma jornalista bolsonarista.
Sintonia. O ex-deputado filiou-se ao PTB de Jefferson. O surfista do golpe, por sua vez, deseja um segundo turno na corrida presidencial para valorizar o cacife do MDB – Imagem: Marcos Corrêa/PR e Lula Marques/Agência PT
O deputado cassado tem frequentado canais bolsonaristas de comunicação. Em uma das aparições, disse que a eleição será decidida pelo tamanho da rejeição de Lula e de Bolsonaro, e as pesquisas mostram que, por ora, é isso mesmo. Pior para o presidente, embora Cunha acredite que o capitão vencerá. Em outra entrevista, disse apoiar Bolsonaro por este ser “conservador nos costumes e liberal na economia”. Ao concorrer pela última vez, em 2014, elegeu-se como o terceiro deputado mais votado do Rio, 232 mil sufrágios. O líder foi Bolsonaro, com 464 mil. À época, Cunha comentou: “Tenho um forte eleitorado evangélico, que não me faltou. Mas perdi muitos votos para o Bolsonaro”. O mandato que a dupla conquistou ali pavimentaria a situação atual do País. Comandante da Câmara a partir de 2015, Cunha decapitou Dilma Rousseff. No dia em que o plenário aprovou o impeachment, Bolsonaro citou o coronel-torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, prenúncio do que viria.
O impeachment alçou Temer ao poder, antigo sócio de negócios políticos de Cunha. O dito “pacificador” é hoje um colaboracionista de Bolsonaro. Defende a candidatura de Simone Tebet, do MDB de Mato Grosso do Sul, apesar do desempenho dela nas pesquisas. O chefe do partido, o deputado paulista Baleia Rossi, é cria de Temer e defensor da senadora. No MDB, há quem diga que Simone é útil para empurrar a eleição ao segundo turno. E que só com um duelo final entre os dois rivais principais é que a sigla terá cacife para vender o apoio.
Em 2006, ano da reeleição de Lula, Temer era presidente da legenda e não queria se aliar ao petista. Encontrou duas vezes o cônsul-geral americano no Brasil, Christopher McMullen. Uma em janeiro, outra em junho, ambas em São Paulo. As reuniões foram relatadas por McMullen a Washington em telegramas secretos, tornados públicos pelo WikiLeaks após Temer assumir o lugar de Dilma. Na primeira conversa, Temer chamou de “fraude” a vitória de Lula em 2002 e criticou-o por “foco excessivo” no social. Na segunda, reclamou que o petista dava poucos cargos ao MDB e atacou lulistas da sigla, como o senador Renan Calheiros, motivo para ter sido descrito por McMullen como “anti-Lula”. O PMDB, segundo Temer, ficaria livre naquela eleição, pois “quem quer que vença terá de vir até nós para fazer qualquer coisa”.
Beneficiado por liminar, Cunha pretende voltar à Câmara pelo voto dos paulistas
Segundo um senador do PT, Lula topa conversar com todos no MDB, apesar do impeachment de Dilma, menos com Temer. Em 18 de julho, o ex-presidente recebeu emedebistas aliados, como Calheiros, e dias depois alguns deles foram a Temer pedir para Rossi cancelar a convenção que oficializaria a candidatura de Simone. Em vão, claro. O PT oficializou a de Lula em 20 de julho, ocasião em que aprovou um documento que diz: “O projeto de País com crescimento, distribuição de renda, políticas de bem-estar social, plenas liberdades democráticas e soberania foi interrompido por meio do golpe do impeachment da presidenta Dilma”. Temer sentiu. Afirmou ao UOL que “não houve golpe” e que Dilma, apesar de “honestíssima”, “teve dificuldades no relacionamento” com o Congresso. “Eu agradeceria que o senhor Michel Temer não mais buscasse limpar sua inconteste condição de golpista utilizando minha inconteste honestidade pessoal e política”, rebateu a petista em nota.
A ex-presidente aproveitou e reconheceu o papel do outro escorpião-golpista do enredo. A “dificuldade”, anotou ela, “era uma integral rejeição às práticas do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha”. Este escreveu um livro, Tchau, Querida: o Diário do Impeachment, com o qual tem feito, em cidades paulistas, campanha travestida de noite de autógrafos. Já passou por Marília, Bauru, Guarulhos e Santos, por exemplo. Diante da nota de Dilma, Cunha tuitou que “a mentira sempre foi a principal arma do PT”.
Cínico. Foi por mentir a colegas deputados que Cunha foi cassado em 2016. No ano anterior, havia negado em uma CPI possuir contas no exterior. E possuía, como mostraria o Ministério Público da Suíça em uma papelada enviada à Procuradoria-Geral da República. PSOL e Rede pediram ao Conselho de Ética um processo por quebra de decoro contra ele. À frente da Câmara, o acusado botou a deposição de Dilma para andar no dia em que o PT anunciou que votaria para cassá-lo no Conselho. Cunha perdeu o mandato e o direito de concorrer por oito anos. Só poderia voltar a se candidatar a partir de 2027. No último dia 21 de julho, conseguiu uma liminar que suspende os efeitos da cassação e o autoriza a disputar a eleição. A liminar é do juiz Carlos Augusto Pires Brandão, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sediado em Brasília. Um magistrado nomeado para a Corte por Dilma, em 2015.
Aposta. A candidatura de Simone Tebet é conveniente para Temer, confiante de que ela será capaz de prolongar a disputa – Imagem: MDB Nacional
Entre outras, os advogados de Cunha alegaram que a cassação se baseou em sigilos bancário e fiscal e que estes não foram quebrados por ordem judicial, mas repassados, ao menos em parte, pela Procuradoria-Geral a deputados. Ao pedirem a liminar, disseram ainda que era um caso urgente, em razão da eleição à vista. A procuradora Michele Rangel Vollstedt Bastos entrou com um recurso e um mandado de segurança no tribunal para derrubar a liminar. Para ela, Cunha aguardou “ardilosamente a proximidade do pleito eleitoral de 2022 para só então ajuizar a ação”. A urgência alegada pelo ex-deputado, a justificar o pedido de liminar, é uma “criação artificial” dele “e, convenhamos, a ninguém é dado se beneficiar da sua própria torpeza”.
Cunha ficou preso de forma preventiva de outubro de 2016 a maio de 2021 (os 14 meses finais foram de prisão domiciliar). Tudo consequência de ações penais nascidas da Operação Lava Jato e da Operação Sepsis. Na Lava Jato, foi condenado a 15 anos pelo então juiz Sergio Moro, em março de 2017, processo anulado pelo Supremo em setembro de 2021 e remetido à Justiça Eleitoral do Rio para começar do zero. Essa decisão desfez a condição de Cunha de “ficha suja”, o que o impediria de se candidatar este ano. A inelegibilidade decorrente da cassação era o derradeiro obstáculo à candidatura. Em setembro de 2020, ele foi condenado a 20 anos pelo juiz Luiz Antonio Bonat, substituto de Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba, em um caso pendente de decisão de segunda instância, pois o Supremo ainda julgará se anula também e remete ao Rio. Na Sepsis, Cunha havia sido condenado a 24 anos pelo juiz Vallisney de Souza Oliveira, de Brasília, em junho de 2018, processo que o TRF1 anulou e despachou à Justiça Eleitoral do Rio Grande do Norte.
“Eduardo Cunha é um dos maiores símbolos da corrupção. Colado no Bolsonaro é ótimo para o Lula”, diz o deputado federal petista Henrique Fontana, que como líder do governo Dilma colecionou embates com Cunha. “Mas será que ele conseguirá se eleger? Quantos deputados federais o PTB tem por São Paulo (nenhum)? Se for eleito, não terá nem 5% do poder de antes.”
MDB. Presidente da sigla, Baleia Rossi é cria de Temer e garantiu o lançamento de Tebet – Imagem: Wendel Lopes/MDB
O dono do pedaço agora é Arthur Lira, o bolsonarizado comandante da Câmara, um discípulo de Cunha. Este quer reviver a parceria com Lira. Diz que votaria pela reeleição dele e que “dificilmente” o alagoano seria derrotado. Em sua ascensão em Brasília, nos tempos de Dilma, Cunha tinha ao lado Lira, um dos chefes do “Centrão”. A força do pepista resulta de um projeto de poder concebido por Cunha, o qual consiste em tirar poder do governo e dá-lo aos deputados. Em suma, mandar no País a partir do Congresso. Esse plano começou a sair do papel com a progressiva tutela, iniciada por Cunha, das verbas federais dirigidas a obras incluídas no orçamento pelos deputados. O orçamento secreto, de 16 bilhões de reais neste ano, é o ápice dessa engenharia. Diante do apetite de Cunha, ele aceitaria ser soldado de Lira?
Dúvidas à parte, é por causa do fluminense que o alagoano tem sido obrigado a inventar viagens ao exterior, sempre que Bolsonaro e o vice, Hamilton Mourão, saem do País. Fez isso em maio e em junho. É que réu não pode assumir o Planalto, e Lira é, em razão da acusação de ter recebido 106 mil de propina através de um assessor pego com a grana no Aeroporto de Congonhas em 2012. O Supremo aceitou a denúncia contra ele em 2019. A decisão sobre réus na linha sucessória foi tomada pelo tribunal em 2016, em ação movida pela Rede dois dias antes de a Corte afastar Cunha da chefia da Câmara, em maio daquele ano.
Cunha, Temer, Lira… Se cuida, Lula. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os escorpiões”
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