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O novo voto de cabresto

A “PEC Camicase” nada mais é do que uma fraude, uma medida de exceção que visa interferir na eleição e comprometer a legitimidade do processo de formação da vontade popular em curso

Jair Bolsonaro e Arthur Lira. Foto: Marcos Corrêa/PR
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O Senado Federal aprovou, às pressas, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que autorizou o presidente da República a realizar, nos próximos meses e fora das regras relativas ao teto fiscal, gastos de aproximadamente 41 bilhões de ­reais. A alteração constitucional recebeu vários apelidos: PEC “das bondades”, “camicase”, “do desespero” e da “compra de votos”, esta última uma alcunha que nos faz lembrar da obra que desnudou as mazelas eleitorais da República Velha, Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal.

A proposta é um estratagema eleitoreiro de Jair Bolsonaro, que não consegue melhorar suas intenções de pesquisa e, segundo as mais diversas pesquisas, seria derrotado pelo ex-presidente Lula ainda no primeiro turno, se as eleições fossem hoje. Não há dúvida de que transferências de renda e subsídios podem e devem constituir instrumento de justiça social. Entretanto, a PEC é inconstitucional por, deliberadamente, possuir o propósito de interferir no processo eleitoral em curso.

A oposição referendou a artimanha que, na contramão da política econômica excludente do Palácio do Planalto nos últimos anos, simulou a implementação de uma política pública de caráter social. Apenas o senador José Serra, acertada e corajosamente, reconheceu a irresponsabilidade fiscal e o propósito escuso. Vale lembrar que estamos a menos de três meses das eleições, momento no qual incidem diversas vedações que visam resguardar o processo contra os poderes político e econômico, bem como garantir a igualdade de oportunidades entre candidatos. A estrutura estatal não pode ser utilizada em proveito de determinada candidatura, sob pena de esvaziamento da soberania popular, do pluralismo político e da desejável alternância no poder. Ademais, é da essência da ideia de responsabilidade fiscal a não utilização do dinheiro público para fins próprios.

Fundamentada em estado de emergência decorrente da elevação dos preços dos combustíveis, circunstância esta conhecida há muitos meses, a PEC nada mais é do que uma fraude, uma medida de exceção que visa interferir na disputa eleitoral brasileira, bem como comprometer a legitimidade do processo de formação da vontade popular em curso. É importante ressaltar que a demarcação das linhas mestras da democracia e da República é um pacto insuscetível de rompimento até mesmo por uma emenda constitucional.

Nossa Constituição rechaça a degradação da democracia, bem como a decomposição dos valores republicanos. A formação da soberania popular sem qualquer distorção é uma cláusula ­pétrea da Carta Magna. Sequer uma força majoritária ocasional, apressada e irrefletida é capaz de alterá-la.

Portanto, não se trata de mera violação à Lei de Responsabilidade Fiscal e à Lei das Eleições. O ardil está sendo implementado no próprio plano constitucional e, o que é muito grave, com a conivência da oposição, o que, de certa maneira, até dilui a possibilidade de uma eventual cassação de mandato do presidente da República.

A “PEC da Compra de Votos” nos remete a passagens nefastas da história do País, como o sistema do coronelismo e do voto de cabresto, práticas descritas no citado livro de Victor Nunes Leal e, por incrível que pareça, ainda enraizadas em nossa sociedade. Não podemos permitir que novas armadilhas reproduzam formas de abuso de poder que deveriam estar há muito enterradas. O simulacro golpista deve ser desnudado.

A proposta a ser implementada para enfrentar o tema é sair da postura de tratar o problema da miséria com meras concessões estatais e evoluirmos para o plano dos direitos, reconhecê-lo como direito fundamental, a ser inserido no artigo 5 da Constituição, portanto cláusula pétrea, imutável. O direito a uma renda mínima a todo cidadão que dela necessite. Precisamos deixar de tratar o combate à miséria como medida de emergência, para encará-lo como um insofismável direito de nossa cidadania, a exemplo do que há tempos prega Eduardo Suplicy. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O novo voto de cabresto”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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