Mundo

assine e leia

Até a Colômbia

Pela primeira vez o país elege um presidente de esquerda. A nova onda progressista na região ganha volume

Até a Colômbia
Até a Colômbia
O ex-guerrilheiro e ex-prefeito de Bogotá almeja modernizar o país - Imagem: Daniel Munoz/AFP
Apoie Siga-nos no

Vamos desenvolver o capitalismo na Colômbia.” Pronunciada por ­Gustavo Petro na metade de um discurso de 43 minutos, após a proclamação oficial dos resultados, a frase pode ter espantado muitos dos milhares de militantes que acorreram ao Arena Movistar, auditório no centro de Bogotá, para comemorar a inédita vitória da esquerda na noite do domingo 19. Logo, o novo presidente emendou: “Não faremos isso porque o adoramos, mas por termos a necessidade de superar a pré-modernidade, o feudalismo e os vários escravismos da Colômbia”. Os aplausos explodiram. A sutileza da sentença a um só tempo acena e desfere uma ácida crítica às classes dominantes da quarta maior economia da América Latina, marcada por extremos de desigualdade e violência, como ocorre em quase toda a região.

A coalizão Pacto Histórico venceu com 50,44% dos votos. São quase 11,3 milhões, acréscimo de 2,75 milhões de sufrágios em relação ao primeiro turno, realizado em 29 de maio. A vantagem diante de ­Rodolfo Hernández, postulante da direita, foi de 3,13 pontos porcentuais. Os números fazem de Petro e de sua vice, a advogada afrodescendente Francia ­Márquez, a chapa presidencial mais votada da história colombiana. A vitória também se explica pela queda da abstenção eleitoral, que ficou em 41,91%, a mais baixa desde as eleições presidenciais de 1998. O auge do desinteresse se deu em 2010, quando Álvaro Uribe conseguiu fazer de Juan Manuel Santos, então ministro da Defesa, seu sucessor. Naquele ano, 57% dos eleitores aproveitaram o dia para fazer outra coisa que não comparecer às urnas.

O êxito da esquerda representa um feito qualitativamente distinto de vitória semelhante em qualquer outro país da América Latina. Para se ter uma ideia do que significa fazer oposição às oligarquias locais, vale citar alguns números: cinco candidatos a presidente foram mortos desde 1948. Outros 60 ativistas foram eliminados nos protestos contra o governo no ano passado, 78 defensores de direitos humanos perderam a vida no mesmo período e 91 lideranças de oposição foram executadas na campanha eleitoral de governadores e prefeitos de 2019. Além disso, 293 ex-guerrilheiros sofreram ataques letais desde o acordo de paz entre governo e guerrilha, em 2016, o número de civis assassinados por militares entre 2002 e 2008 passa de 6,4 mil, enquanto 2 milhões de colombianos foram desterrados por causa da violência política. Os dados são de registros oficiais, organizações de direitos humanos e agências da ONU.

Em seu livro de memórias políticas, Una Vida, Muchas Vidas, Petro mostra como, diante da violência vinda de cima, a população pobre apresentou uma tendência secular a resistir de armas na mão. Ele mesmo aderiu ao Movimento 19 de Abril, grupo guerrilheiro urbano, entre os 18 e os 30 anos de idade. A leitura do livro, ­aliás, é esclarecedora sobre as atuais posições do companheiro Aureliano, codinome do presidente nos tempos de clandestinidade. A inspiração vem, obviamente, de Aureliano Buendía, um dos mais marcantes personagens de Cem Anos de ­Solidão, de ­Gabriel Garcia Márquez. Una Vida, ­Muchas Vidas foi lançado como parte da campanha presidencial, o que à primeira vista poderia torná-lo uma enfadonha peça de ­marketing político. O volume deve, no entanto, ser encarado como uma síntese da história política local nos últimos 50 anos. Petro não oculta a parte mais controversa de sua biografia, a atividade armada, entre 1978-1990, quando o M-19 depôs as armas e seus ativistas adentraram as lutas institucionais. Não poucos se tornaram alvos fáceis de grupos paramilitares.

O eleito Gustavo Petro promete desenvolver o capitalismo para superar o feudalismo

Ao longo das páginas, o companheiro Aureliano disseca a gravíssima sincronia entre latifundiários, paramilitares e narcotraficantes. E aqui faz a ligação ­entre neo­liberalismo, precariedade trabalhista e crime organizado: “A economia informal nada mais é do que uma economia pré-moderna com baixíssima produtividade e geração de riquezas. (…) Essa economia abre caminho para que as máfias matem”. É nesse ambiente que jovens pobres acabam por integrar “os exércitos privados que controlam territorialmente partes de cidades e regiões da Colômbia”.

Há naquelas páginas mais sinais da visão de mundo do líder do Pacto Histórico: “Hugo Chávez era meu amigo e eu respeitava seu processo político, mas o fato de que, na fase final, ele tentasse imitar o modelo cubano levantou muitas dúvidas em mim”. Petro vê o modelo cubano como derivado do sistema soviético. “A América Latina deve propor um novo caminho, baseado na diversidade” política. Ao mesmo tempo, o presidente derrama-se em elogios aos sistemas de saúde e educação da ilha. Ao descrever sua trajetória, o ex-prefeito de Bogotá parece indicar rumos futuros. Em suas palavras, o M-19 “não estava propondo o socialismo, mas uma democracia com justiça social”, espécie de socialdemocracia com transformações reais e maior ativismo estatal.

No programa da coalizão vitoriosa, a principal medida para viabilizar a ampliação de serviços do Estado é uma reforma tributária destinada a taxar grandes empresas privadas de petróleo, bem como dividendos financeiros do topo da pirâmide social. A meta foi apontada por Petro em entrevista à revista The Economist, no fim de maio. “Propomos que a cada dois pesos dessas novas receitas, um reduza o déficit e outro financie os novos gastos sociais. Assim, conseguiremos aumentar o investimento social e reduzir o déficit.”

Se viabilizar a adoção de tais iniciativas sem se tornar refém de um infindável fiscalismo que busca um equilíbrio fiscal inatingível, o novo governo obterá um tento considerável. Não é tarefa trivial. Está também no radar presidencial mudar a dependência das commodities, numa pauta exportadora composta basicamente de “carvão, petróleo e cocaína”, para uma economia industrial, a partir de impulsos do Estado.

Na institucionalidade concreta, Petro e seus auxiliares precisarão usar mil e uma habilidades para conquistar maioria num Congresso excessivamente fragmentado. Apesar de manter a maior bancada individual na Câmara e a segunda no Senado, o Pacto Histórico tem apenas 14% dos assentos em cada casa. Alianças são possíveis, mas a batalha por uma governabilidade que se coloque contra a maré conservadora exigirá um esforço político comparável ao despendido na campanha eleitoral. Não nos esqueçamos que a ­Colômbia até aqui foi peça-chave constante para iniciativas de Washington na região. O divórcio pode não ser consensual. •


* Professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Até a Colômbia “

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo