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França submissa

Um país fraturado escolhe o ruim, Macron, para evitar o pior, Le Pen. Falta ainda a disputa legislativa

França submissa
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Susto. No discurso da vitória, Macron, ao lado da mulher, reconheceu suas limitações e acenou aos franceses de esquerda. Le Pen ultrapassou os 40% de votos válidos - Imagem: Christophe Archambault/AFP e Ludovic Marin/AFP
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Que país emerge da reeleição de Emmanuel ­Macron? Uma França fraturada, com uma extrema-direita mais forte do que nunca (32% dos votos do primeiro turno, somados os três candidatos) e no segundo turno pela terceira vez desde 2002. Neste ano, com 41,5% de votos, Marine Le Pen convenceu mais de 13 milhões de eleitores.

Resultado inédito e assustador. Mais uma vez, como em 2017, milhões de franceses não votaram no segundo turno a favor de Macron. Votaram contra Le Pen. E a abstenção foi de 28%, a maior desde 1969.  No domingo à noite, Macron dirigiu-se a eles no seu discurso diante da ­Torre Eiffel, onde chegou a pé, com ­Brigitte ­Macron e algumas crianças, ao som do hino europeu, Ode à Alegria, a Nona Sinfonia de Beethoven. “Sei que muitos compatriotas votaram em mim não para apoiar as ideias que eu defendo, mas para conter as ideias da extrema-direita. Quero agradecer e dizer-lhes que tenho consciência de que este voto me traz obrigações para os próximos anos. Penso também em todos os compatriotas que se abstiveram. O silêncio deles significou uma recusa de escolher e devemos responder a isso também. Penso ainda nos compatriotas que votaram em madame Le Pen. Não sou mais o candidato de um partido, mas o presidente de todos os franceses. Sei que, para grande número de nossos compatriotas que votaram na extrema-direita, a raiva e os desacordos os levaram a isso. Eles devem também encontrar uma resposta. Será minha responsabilidade e dos que me cercam.”

Le Pen, cujo programa amedronta e causa horror em parte do eleitorado, enfrentou um candidato à reeleição detestado por uma grande porção dos franceses, sobretudo jovens, intelectuais, profissionais de saúde e de educação e entre a esquerda que vê nele o “presidente dos ricos”. Grande número de eleitores que deram a vitória a Macron, com 58,5% dos votos do segundo turno, foi às urnas “com o nariz tapado”. O voto macronista, de adesão a um homem e seu projeto, 27,8% no primeiro turno, é um eleitorado composto de ricos, altos funcionários e executivos, além de aposentados.

Desta vez, a “ameaça Marine Le Pen” não convenceu uma parte dos eleitores de esquerda a fazer o gesto republicano para barrar o Rassemblement National, nova encarnação do Front National fundado por Jean-Marie Le Pen em 1972, acompanhado de nostálgicos da Argélia francesa. O próprio pai de Marine Le Pen foi acusado de ser um torturador na Guerra da Argélia. “Macron, é claro, não dava tesão, mas Le Pen é outra coisa. Nós não confundimos capitalismo autoritário e protofascismo”, resumiu ao jornal ­Libération Simon Duteil, codelegado-geral do sindicato Solidaires, para explicar o dilema existencial da esquerda.

A abstenção atingiu a marca de 28%, a maior desde 1969

O presidente tem um grande índice de rejeição e só foi eleito e reeleito pelo voto republicano de quem não pode conceber a França dirigida pela extrema-direita colonialista defensora da “Argélia francesa”, que atentou contra a vida do general De Gaulle (o grupo de militares terroristas da Organisation de l’Armée ­Secrète – OAS) por sua iniciativa dos acordos de paz de Évian e que teve no marechal Pétain, que dirigiu o país da cidade de Vichy de mãos dadas com o invasor nazista, seu paroxismo. A extrema-direita é o ressurgimento de uma França rançosa, com cheiro de Vichy, ódio aos muçulmanos e imigrantes em geral, que prega um patriotismo típico do fascismo, negando os valores mais fundamentais de igualdade da república francesa.

No debate entre os dois turnos, Le Pen foi acusada por Macron de ser dependente do poder russo, pois seu partido deve 8 milhões de euros a um banco próximo do Kremlin. “Nenhum banco francês quis nos emprestar na época”, reagiu a candidata, que dissimula seu desamor pela União Europeia com a ideia estapafúrdia de uma “Europa das Nações”. Se eleita, ela marcharia para um confronto ou para um “Frexit”, segundo alguns analistas.

Na França, os jornais não tentam vender a ilusão da neutralidade, como no Brasil. Jornais têm ideologia, têm posições políticas e tomam posição sobre assuntos de interesse comum. Jornais de esquerda, como o Le Monde, o ­Libération, o ­Mediapart e L’Humanité fizeram campanha aberta contra a ­extrema-direita e alguns declararam apoio a Macron no segundo turno, com todas as ressalvas necessárias. Sem chamar Le Pen de fascista, denunciaram sua xenofobia, seu racismo, o programa liberticida e a ausência de uma política coerente para o meio ambiente e a transição ecológica.

Nova campanha. Mélenchon quer levar a esquerda ao comando parlamentar – Imagem: Christophe Simon/AFP

Edwy Plenel, ex-diretor do Le ­Monde e diretor de redação do jornal ­online Mediapart, escreveu um artigo com longa retrospectiva histórica, conclamando os eleitores de esquerda a “votar mesmo com sofrimento para afastar o pior”. “O voto será contra ela e não por ele. É um voto de razão, não de paixão.” A análise do Mediapart para explicar o crescimento da extrema-direita aponta a responsabilidade de ­Macron, que se perdeu na busca de bodes expiatórios em vez de cuidar das urgências ecológicas, sociais e democráticas. O texto cita a bela máxima de Victor Hugo: “Salvemos a liberdade. A liberdade salva o resto”.

O programa da extrema-direita, que rejeita a denominação e se diz um partido “de direita”, previa a anulação do direito do solo (jus soli) que outorga a nacionalidade a todos os nascidos em terra francesa, inclusive filhos de estrangeiros. Para culminar, Le Pen defende a presunção de inocência a policiais (excludente de ilicitude no Brasil) e quer banir o direito de mulheres usarem o véu muçulmano no espaço público.

Os eleitores do terceiro colocado no primeiro turno, Jean-Luc Mélenchon, do partido de esquerda La France Insoumise, tiveram de superar suas posições radicalmente opostas àquelas do presidente-candidato e pôr na urna um voto em Macron. Parte dos mélenchonistas preferiu se abster. Houve ainda aqueles que pregaram o “voto revolucionário” em Le Pen no segundo turno, para tornar o clima social explosivo e deixar “tudo mais claro”. Logo após o primeiro turno, Mélenchon começou a campanha do que chama de “terceiro turno”. Como as eleições para o Poder Legislativo são em junho, o esquerdista iniciou negociações com os comunistas, os ecologistas e seus ex-colegas socialistas para formar uma união e eleger uma bancada majoritária da qual ele, do partido mais votado desse campo, emergeria como primeiro-ministro, inaugurando uma coabitação, como a que Jaques Chirac experimentou com os socialistas. O desafio lançado pelo partido de Mélenchon promete grande mobilização para as legislativas.

O “terceiro turno” se dará em junho, com as eleições para o Parlamento

As eleições vão redesenhar o panorama político francês. O primeiro turno revelou um Partido Socialista, que governou o país em dois mandatos de François Mitterrand e um de François Hollande, reduzido a 1,7% dos votos. O partido tradicional de direita, Les Républicains, teve um porcentual abaixo de 5%, o que o fragiliza diante da direita macronista. A direita republicana, de Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy, debate-se em divisões internas depois de ver grande número de seus quadros aspirados pelo partido de Macron, La ­République en Marche. Entre os dois turnos, ­Sarkozy declarou apoio a Macron, sem ter declarado apoio à candidata de seu partido, Valérie Pécresse, no primeiro turno.

O jornal Mediapart assinalou: “Apesar de duas vezes condenado em primeira instância, sobretudo por corrupção e indiciado no dossiê líbio por associação criminosa, desvio de fundos públicos, financiamento ilícito de campanha eleitoral e, de novo, corrupção, a causa judicial do ex-presidente é vista sem preconceito pelo círculo próximo do presidente. Quando ele declarou seu apoio, o candidato Macron se disse honrado”.

Nesta campanha, Le Pen desviou o foco de sua xenofobia e se mostrou defensora do poder aquisitivo dos mais modestos, atingidos duramente pela inflação geral e pela alta dos combustíveis. ­Jean Tirole e Esther Duflo, ganhadores do Nobel de Economia de 2014 e 2019, respectivamente, afirmaram ao jornal ­Libération que o programa econômico da candidata era xenófobo e incoerente e levaria a um aumento das desigualdades que ela prometia reduzir. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “França submissa “

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