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Militares, entre deveres e poderes

A postura antirrepublicana revela uma derrocada profunda

Militares, entre deveres e poderes
Militares, entre deveres e poderes
Foto: EVARISTO SA / AFP
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Bolsonaro assestou mais uma paulada nas relações entre o Executivo e o Judiciário, ao conceder indulto ao deputado Daniel Silveira. Condenado por graves ameaças à ordem constitucional, Silveira recebeu a graça do presidente da República.

Para o general Eduardo José Barbosa, presidente do Clube Militar, Bolsonaro “restabeleceu o estado de direito, constantemente ignorado por alguns ministros da Suprema Corte com suas interpretações parciais e antipatrióticas, alinhadas com o pensamento de políticos de esquerda, que insistem no retorno ao poder de criminosos”….

O ataque do general Brabosa (não é erro de digitação) ao STF é a mais escancarada demonstração da inconformidade dos militares do Clube com um resultado das eleições que não atenda aos seus esgares particularistas e atentatórios aos deveres inscritos nos códigos de conduta.

Vou repetir aqui alguns incisos do Estatuto dos Militares em sua Seção II:

IX – Ser discreto em suas atitudes, maneiras e em sua linguagem escrita e falada;

X – Abster-se de tratar, fora do âmbito apropriado, de matéria sigilosa de qualquer natureza;

XI – Acatar as autoridades civis.

O tom do manifesto do Clube Militar permite suspeitar que, ao vestirem a farda e empunharem armamentos, os oficiais sentem-se ungidos, superiores aos demais cidadãos.

Os brasileiros que repudiam as objurgatórias do general Brabosa certamente gostariam de acreditar na nota do Ministro da Defesa publicada domingo, dia 24 de abril. Na nota, editada para responder a uma palestra do ministro Luís Roberto Barroso, o alto funcionário do Estado declara: “O Ministério da Defesa repudia qualquer ilação ou insinuação, sem provas, de que elas teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia… Afirmar que as Forças Armadas foram orientadas a atacar o sistema eleitoral, ainda mais sem a apresentação de qualquer prova ou evidência de quem orientou ou como isso aconteceu, é irresponsável e constitui-se em ofensa grave a essas instituições nacionais permanentes do Estado brasileiro… Além disso, afeta a ética, a harmonia e o respeito entre as instituições”.

Os fardados repetem de forma protocolar o respeito e a consideração aos valores republicanos. No entanto, nos momentos de crise, suas falas revelam o autoritarismo e o espírito de corpo antirrepublicano que circundam seus corações e mentes.

Nas repúblicas modernas, entre as cláusulas pétreas, figuram aquelas relativas à representação legitimada pelo voto, à impessoalidade na administração pública e à constituição de um sistema de poderes e garantias fundado na lei. O sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado contemporâneo. É isso que o obriga a punir os ataques às instituições que garantem a liberdade de todos, barrando as tentativas de opressão perpetradas por grupos fardados ou não. Vou perpetrar uma banalidade: militares, juízes, procuradores e policiais são servidores e não senhores e predadores do Estado de Direito.

O manifesto do Clube Militar exprime, ademais, o afastamento dos ideais e princípios que inspiraram o movimento tenentista que postulava a modernização do Brasil nos anos 20 e 30 do século passado. Vale a pena consultar o trabalho do historiador Guillaume ­Azevedo Marques de Saes.

Saes apresenta o Esboço do Programa Revolucionário de Reconstrução Política e Social do Brasil, “datado de fevereiro de 1932 e redigido por uma comissão composta de dois militares veteranos dos levantes tenentistas da década de 1920, ­Stênio Caio de Albuquerque Lima, capitão do Exército, e Augusto do Amaral ­Peixoto, capitão-tenente da Marinha, pelo tenente civil Abelardo Marinho de ­Andrade e pelo jurista – posteriormente ministro do ­Trabalho nos primeiros anos do Estado Novo – Valdemar Falcão”.

Inspirado no Programa Político, o Manifesto do Clube 3 de Outubro de 1935 proclamava: “Aproveitemos as conquistas de outros povos, as lições da política mundial, o adiantamento da sociologia, mas sem perdermos a noção da realidade brasileira e sem abjurarmos as tradições nacionais. Realizemos a democracia, entregando o governo aos que trabalham e produzem. Asseguremos bom rumo à administração, facultando aos especialistas interferência eficiente na gestão dos negócios públicos. Evitemos o arbítrio, dando o governo a órgãos coletivos. Ergamos uma justiça autônoma, una e independente. Promovamos a educação intensiva da massa popular, generalizando o culto pelo Direito. E teremos assim operado a verdadeira reconstrução político-social do Brasil”.

Deixo ao leitor de CartaCapital a incumbência de avaliar a profundidade da derrocada.

N.B.: Este artigo utiliza trechos de publicações anteriores. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Militares, entre deveres e poderes”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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