Justiça
Usados por empresas e políticos, robôs e perfis falsos ainda escapam da Justiça Eleitoral
Nova forma de deturpar e manipular o debate nas redes sociais, essas contas reproduzem o comportamento normal dos usuários para aumentar o impacto da propaganda


Na segunda-feira 11, um levantamento feito pelo deputado Elias Vaz, do PSB, no Portal da Transparência revelou que as Forças Armadas compraram 35 mil doses de Viagra. Comumente utilizado para combater a disfunção erétil, o medicamento não tem relação com as atividades militares e os usuários das redes sociais foram rápidos em criticar a aquisição, sem licitação e com sobrepreço. Rapidamente, perfis criados há poucos dias começaram a reproduzir comentários idênticos nas postagens dos críticos, apontando a viabilidade do Viagra no tratamento da hipertensão pulmonar, a mesma justificativa dada pela Força Aérea e pela Marinha. Uma dessas contas tuitou a mesma mensagem em dezenas de postagens na mesma hora e, depois, começou a interagir com contas bolsonaristas, compartilhar conteúdo antipetista e atacar influenciadores da esquerda. Foi uma campanha de desinformação coordenada a olhos vistos, utilizando as chamadas contas inautênticas.
Esse é o termo criado pelo Facebook para se referir às contas robôs, automatizadas e operadas por programas; ciborgues controlados tanto por humanos quanto por software; e os trolls operados por pessoas reais, mas que reproduzem o conteúdo e o comportamento das contas biônicas. Algumas delas são até contas antigas, compradas de outros usuários e que, às vezes, contam com dezenas de milhares de seguidores, mas que subitamente mudam de nome e de assunto favorito. O que todas elas têm em comum é a preferência por espalhar conteúdos mentirosos com a intenção de enganar outros usuários das redes sociais, interagir com influenciadores alinhados com seus discursos e por agir de forma coordenada.
Segundo a pesquisadora do InternetLab Heloisa Massaro, essas contas são ferramentas de uma nova forma de deturpar e manipular o debate público, gerando “estratégias para criar a impressão de que há pessoas discutindo um assunto quando, na verdade, elas não existem”. Ela aponta que a tática é reproduzir o comportamento normal dos usuários para aumentar o impacto da propaganda. Há formas mais simples, como apenas colocar um robô ou bot na internet, e mais complexas, como têm surgido nas últimas semanas.
O TSE PRIORIZOU ACORDOS COM AS BIG TECHS, EM VEZ DE FOCAR NAS AGÊNCIAS LOCAIS QUE FAZEM O SERVIÇO SUJO
Recentemente, a repórter Clarissa Levy, da Agência Pública, revelou que o aplicativo iFood contratou agências de monitoramento digital para empreender uma campanha contra uma greve de entregadores e a formação de uma organização profissional desses trabalhadores. A investida contava com uma rede de contas administradas por estas agências que não apenas veiculavam mensagens contra essas pautas, mas também simulavam o comportamento de pessoas de verdade, interagindo com outras contas.
A especialista em marketing digital Raissa Lyra diz que há todo um mercado de profissionais da comunicação contratados para “reverter ideias”. “É muito semelhante ao esquema das fake news, no sentido de que você tenta mascarar um problema com uma falsa verdade”, diz ela. “É muito comum que procurem profissionais para tirar o foco ou esconder a sujeira das marcas, e pagam muito dinheiro. É comum, mas é antiético.” As práticas vão desde a manipulação dos mecanismos de busca para esconder histórias negativas às reputações dos clientes, usando até o chamado “lodo rosa” (pink slime, em inglês), termo atribuído aos sites que parecem ser jornalísticos, mas que apenas reproduzem notícias de outras fontes, até a criação dessas extensas redes de contas que mesclam diferentes táticas para esconder a automatização dos conteúdos.
Isso não é algo restrito ao Brasil. No ano passado, nos EUA, a gigante Uber usou de diversas estratégias para escapar das leis trabalhistas da Califórnia e, segundo a pesquisadora Emily Dreyfuss, da Universidade Harvard, uma delas foi a contratação de empresas de relações púbicas para criar apoio popular para uma consulta pública que tornou a Uber e a Lyft intocáveis pela legislação. “A linguagem na proposta era extremamente confusa. A Uber fez uma campanha gigantesca nos meios tradicionais e na internet e o resultado foi que muitos motoristas do aplicativo não sabiam como votar para assegurar seus direitos”, relata Dreyfuss. Fazendo com que conteúdos se disseminem em vários meios e pareçam populares nas redes sociais, a intenção das empresas é convencer as pessoas de que aquilo é a opinião da maioria e usar isso como desculpa para passar legislação benéfica a elas.
As inovações da indústria da mentira facilitam a vida de oportunistas como Jair Bolsonaro – Imagem: Alan Santos/PR
Além da manipulação do mercado, o subproduto dessas campanhas de comportamento inautêntico coordenado é a erosão da confiança do público numa realidade compartilhada. Para Dreyfuss, em pequenas comunidades, isso pode criar desconfiança sobre o caráter de outras pessoas ou tendências sociais e criar pânico moral, que é um medo generalizado de que há algum plano maligno em curso para ameaçar a comunidade. Os alvos geralmente são políticos ou líderes sindicais, uma vez que grandes empresas têm trabalhado ativamente para desarticular organizações de trabalhadores. Na cidade de Stockton, na Califórnia, o prefeito Michael Tubbs, promissor político progressista, foi vítima de sofisticada campanha de desinformação nesses moldes, provavelmente paga por seus adversários, que comprometeu a sua reeleição em 2021.
Esse tipo de financiamento se tornou conhecido dos brasileiros mais ou menos ao mesmo tempo que ficamos familiarizados com o termo “disparos em massa”. Em 2018, a campanha de Jair Bolsonaro foi pega se beneficiando dessa modalidade de comportamento inautêntico em ações pagas por empresários simpáticos ao candidato. Desde então, o Tribunal Superior Eleitoral tornou esses disparos uma prática ilegal, mas especialistas ainda enxergam lacunas na legislação eleitoral. Como foi difícil ligar oficialmente essas ações à campanha de Bolsonaro, os responsáveis escaparam de sanções mais duras. Segundo Massaro, “a legislação trabalha muito com os conceitos de o que é campanha, o que é propaganda, o que é manifestação do eleitor e na internet essas coisas se confundem”.
MAIS DE MIL CONTAS FALSAS FORAM BANIDAS PELO TSE. O WHATSAPP REMOVEU OUTRAS 360 MIL
É uma questão de alta complexidade, uma vez que a constatação de abuso de poder (político ou econômico) numa campanha resulta em cassação do mandato e configura uma reversão da vontade popular expressa pelo voto. Por isso, essas sentenças são mais comuns em eleições locais do que nas nacionais. Além disso, o TSE sempre teve dificuldade em medir o impacto real da desinformação no processo de decisão dos eleitores de forma a justificar a aplicação de sentenças mais rígidas.
Enquanto a Corte diz que será mais dura na eleição de 2022, e analistas enxergam que os ministros estão mais preparados, há quem duvide da capacidade de conter novas estratégias de desinformação. O governo Bolsonaro, na figura das Forças Armadas, foi flagrado seguidamente usando as mesmas táticas de empresas como o iFood, não só no caso da compra de Viagra, mas também empreendendo uma campanha de desinformação sobre o combate ao desmatamento na Amazônia. A Meta, holding proprietária do Facebook, WhatsApp e do Instagram, derrubou uma série de contas inautênticas administradas por dois militares não identificados que disseminavam conteúdos críticos à atuação das ONGs e elogiosos ao Exército.
Uma nova resolução do TSE, promulgada em janeiro deste ano, tem todo um capítulo focado na regulação da propaganda na internet dentro do Programa de Enfrentamento à Desinformação, mas, apesar da prerrogativa dos ministros do Tribunal de interpretar as regras de forma bastante abrangente, há muitas menções ao combate de ações coordenadas de comportamento inautêntico, mas poucas medidas específicas além das parcerias firmadas com as plataformas de redes sociais e os canais de denúncia para a derrubada de contas engajadas nessas campanhas. Para especialistas em Justiça Eleitoral, estratégias mais novas e sofisticadas, como as usadas pelas Forças Armadas e pelo iFood, ainda não estão no radar da Corte. O TSE alega, porém, ter recebido mais de 5,5 mil denúncias, que resultaram em 1.042 contas banidas por envio massivo de fake news relacionadas às eleições. Em todo o Brasil, o WhatsApp removeu 360 mil contas que repassavam conteúdo abusivo.
A parceria com empresas globais das redes sociais e o combate aos agentes internos engajados em disseminar desinformação são dois movimentos distintos, explica Massaro. Na avaliação da especialista, é positivo que a Justiça brasileira não tenha agido para responsabilizar as plataformas, embora o diálogo com elas seja importante. Por outro lado, acrescenta, “existe pouca discussão sobre o papel das empresas de publicidade e das pessoas que vendem essas ferramentas de marketing digital, pois estas são indivíduos que podem ser investigados. É possível descobrir quem são eles e existe uma lacuna em relação a isso na legislação”.
Por mais positiva que a aproximação das redes sociais seja à Justiça Eleitoral, elas também não são atores inocentes no jogo da desinformação. Num movimento para atacar uma concorrente, a plataforma chinesa de vídeos TikTok, o Facebook empregou uma campanha de desinformação que a própria empresa descreveria como comportamento inautêntico coordenado. Usando influenciadores, a grande mídia e jornais locais, a gigante tecnológica espalhou que um desafio estava se popularizando entre os jovens usuários do TikTok, o de alunos atacarem professores em sala de aula e filmar as agressões. Emily Dreyfuss, que pesquisa justamente a plataforma de vídeos, não conseguiu encontrar uma única postagem sobre este desafio. Foi apenas um ano depois que as comunicações entre o Facebook e a empresa de assessoria de imprensa que idealizou a campanha foram vazadas para o The Washington Post e o envolvimento da plataforma foi revelado. Para Dreyfuss, “esse tipo de campanha, que oculta a identidade e os objetivos, é o ‘novo normal’ em ambientes corporativos, sobretudo em ambientes políticos tradicionais”.
Esse comportamento, segundo Dreyfuss, aponta para a destruição da fé na verdade e prepara o terreno para o fascismo. “É a falta de confiança no que é real que permite que ditadores tomem o poder, pois eles impedem as pessoas de confiarem nos outros”, colocando-se como os únicos capazes de informar e protegê-las. Casos isolados ocultam um processo estabelecido nos ambientes digitais, que começou na seara política como estratégia de ampliar influência, mas que contaminou o setor privado. Diante da possibilidade de maximizar lucros, as empresas não se importam em contribuir para a ruína das instituições democráticas e permitir que oportunistas como Bolsonaro cheguem ao poder, mesmo com a propagação de discursos de ódio que convulsionam a sociedade. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1204 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fora do radar”
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