Política
Ao tentar censurar o Lolla, Bolsonaro só estimulou a participação dos jovens nas eleições
O festival ficou marcado pelos protestos e não pela apresentação de roqueiros e pop stars. Agora, o presidente aposta as fichas nos septuagenários ‘veteranos’


Cala boca já morreu, é proibido proibir, censura nunca mais. O resultado concreto da tentativa de Raul Araújo, ministro do Tribunal Superior Eleitoral, de censurar o festival Lollapalooza, de volta ao Brasil após dois anos e meio de pandemia, foi estimular a rebeldia que andava recolhida nos artistas e nos jovens. Ao acolher uma representação do PL, partido de Jair Bolsonaro e do impoluto Valdemar Costa Neto, contra as manifestações políticas nos shows, Araújo acabou por produzir o efeito contrário: o Lolla 2022 ficou marcado pelos protestos e não pela apresentação de roqueiros e pop stars. Um certo clima de 1968 e dos antigos festivais da canção ecoou no Autódromo de Interlagos. A decisão, extemporânea, inútil e revogada à base de desculpas esfarrapadas (o ministro disse ter sido induzido ao erro pelos autores do pedido), ainda deu impulso à campanha pelo voto jovem nas eleições de outubro, uma das bandeiras do campo progressista, dada a baixa emissão de novos títulos de eleitores até este momento. Por extensão, o evento transformou-se em uma grande arena de repúdio ao capitão e de apoio ao ex-presidente Lula. Sem querer, Araújo portou-se como um cabo eleitoral acidental do petista.
A banda Fresno repudiou a decisão e fez questão de acender um luminoso “Fora Bolsonaro” no telão do palco. O baterista Fabrizio Moretti gritou a mesma mensagem ao término do show do Strokes. A rapper Gloria Groove e o cantor Lulu Santos mandaram a censura às favas. Marcelo D2, vocalista do Planet Hemp, apelou para o humor: “O cara falou que a gente não pode falar de política, mas a gente pode homenagear o festival: ‘Olê, olê, olá, Lolla, Lolla’”. No espetáculo de encerramento, Emicida fez um contundente discurso contra o atual presidente. A seu lado, Criolo figurava no palco com o mais emblemático símbolo daquela edição do festival: uma camiseta estampada com um título de eleitor e o apelo “Vote”.
Araújo viu propaganda antecipada nas manifestações do festival, mas liberou outdoors pró-Bolsonaro – Imagem: Sérgio Amaral/STJ
A celeuma começou no sábado 26, quando Pabllo Vittar fez um “L” com os dedos da mão e ao descer do palco recebeu de um fã uma toalha estampada com o rosto de Lula. Naquele mesmo dia, o PL apresentou uma queixa no TSE, acusando a cantora de fazer propaganda eleitoral antecipada e cobrando a imposição de multas, “sem prejuízo de que a Justiça Eleitoral, em poder de polícia, impeça a continuação do evento”. No dia seguinte, o ministro Araújo deferiu em parte o pedido de tutela antecipada, estipulando multa de 50 mil reais ao festival para cada manifestação de cunho político feita pelos artistas contratados.
A determinação gerou revolta no meio artístico e causou assombro no mundo jurídico. A pop star Anitta, que recentemente figurou em primeiro lugar no ranking global do Spotify com a música Envolver, e o youtuber Felipe Neto se comprometeram a ajudar os artistas do festival a pagar as multas. Em manifesto, 26 professores das principais faculdades de Direito do País, entre eles Maria Paula Dallari Bucci, da USP, e Augusto de Arruda Botelho, fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, observaram que a “propaganda eleitoral não pode ser confundida com manifestação de opinião, ainda que esta seja tendente a determinado partido ou candidato”, e acrescentaram que a decisão representa “precedente perigosíssimo para a nossa jovem e ameaçada democracia”.
Os jovens estão desencantados com a política. O astro Mark Ruffalo e o sambista Zeca Pagodinho tentam reanimá-los no exercício da cidadania – Imagem: Beto Figueroa/MIMO, Redes sociais e Guto Costa
Representando Marcelo D2, o criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, soube que os advogados do partido de Bolsonaro apresentaram à Justiça Eleitoral o número errado do CNPJ da organização do evento e a empresa nem sequer havia sido intimada. Por isso, seu escritório não recorreu da decisão, mas orientou os artistas a “exercerem seu direito constitucional à liberdade de expressão”. Na segunda-feira 28, ao constatar a ruidosa repercussão negativa do episódio, Bolsonaro fez circular na mídia a fantasiosa versão de que “ficou furioso” com a ação do PL e mandou retirá-la. Logo depois, Araújo derrubou a própria liminar e responsabilizou o partido pela tentativa de censura, sob a alegação de que a sigla deu a entender que o festival vinha incentivando as manifestações, o que não era o caso. Detalhe curioso: trata-se do mesmo magistrado que, dias antes, rejeitou uma representação do PT a pedir a remoção de outdoors pró-Bolsonaro e com ataques a Lula em ao menos quatro estados.
De acordo com Kakay, o despacho de Araújo contra o Lollapalooza contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que no julgamento da ADI 5970 “assegurou a todo cidadão o direito de manifestar apreço ou antipatia a qualquer candidato antes, durante ou depois do período eleitoral”. Mais claro, impossível. De toda forma, o tiro do partido de Bolsonaro saiu pela culatra, observa o advogado. “Com a censura, a discussão se avolumou e foi introduzido um componente político importante, que é o voto aos 16 e 17 anos. Também chamou atenção para a necessidade de o jovem se manifestar na hora certa, pelo voto.”
APÓS ANITTA SE UNIR À CAMPANHA DO TSE, MAIS DE 120 MIL JOVENS DE 16 A 17 ANOS SE INSCREVERAM PARA PARTICIPAR DAS ELEIÇÕES
O movimento pela maior participação dos jovens nas eleições foi puxado por Anitta no bojo da tradicional campanha “Jovem Eleitor” do TSE, prevista em lei, e que virou alvo de ataques da extrema-direita. Em 23 de março, a cantora anunciou uma nova regra para seus fãs: “Se for maior de 16, eu só tiro a foto se tiver foto do título de eleitor”. Na última década, a turma se desencantou com a política. Em 2010, ao menos 2,8 milhões de brasileiros com 16 e 17 anos possuíam título de eleitor. Com a crise de representação política exposta pelas jornadas de junho de 2013 e demonização dos partidos tradicionais pela Lava Jato, o número despencou para 1,8 milhão em 2018. Atualmente, existem 10 milhões de cidadãos aptos a votar nessa faixa etária, mas somente 835 mil deles estão com o título nas mãos.
O apelo à chamada “Geração Z” é um gesto político calculado. Antibolsonarista de carteirinha, Anitta sabe que os jovens são mais propensos a votar em Lula do que no ex-capitão. A mais recente pesquisa do Datafolha, que realizou 2.556 entrevistas em 22 e 23 de março, revela que o candidato petista possui 51% das intenções de voto entre os eleitores de 16 a 24 anos, enquanto Bolsonaro figura com 22%. Rapidamente, o movimento liderado pela cantora ganhou novos adeptos no mundo artístico. Zeca Pagodinho, Luísa Sonza e a ex-BBB Juliette são algumas das celebridades que usaram as redes sociais para incentivar os brasileiros nessa faixa etária a participar do processo eleitoral. Até mesmo Mark Ruffalo, astro de Hollywood, pegou carona na campanha pelo voto jovem. “Em 2020, os americanos só derrotaram Donald Trump porque os eleitores usaram seus direitos democráticos, especialmente os jovens. Para derrotar Bolsonaro, brasileiros de 16 e 17 anos devem se registrar para votar nas próximas eleições”, escreveu o ator norte-americano no Twitter.
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
O golpe foi sentido. Um dia após a publicação de Anitta, o senador Flávio Bolsonaro, filho Zero Um do presidente, não escondeu a dor de cotovelo ao comentar a campanha nas redes sociais. “23:59 Lula tem 550% das intenções de voto e ganha de todo mundo. 00:00 Pufavô, jxvens, tirem o título de eleitor pra tirar o Bozo da presidência”, escreveu no Twitter. Instantes depois, as milícias digitais bolsonaristas entraram em ação, acusando o TSE de tentar “interferir nos resultados”, desgastada tática para deslegitimar o pleito vindouro. Primeiro, a turma buscou estimular a participação dos “veteranos” nas eleições, uma vez que o voto é facultativo para os maiores de 70 anos, a faixa etária onde o presidente tem um desempenho um pouco melhor. Diante da mínima repercussão da campanha, os apoiadores do ex-capitão ainda tentaram emplacar, no sábado 26, a hashtag #SouJovemVotoEmBolsonaro, que acabou ofuscada nas redes sociais pela repercussão negativa da censura ao Lollapalooza.
Na ocasião, foram registradas 26,5 mil menções à campanha bolsonarista, ao passo que as críticas à proibição de manifestações políticas no festival ultrapassaram a marca de 366,7 mil, revela um levantamento feito pelo analista de redes sociais Pedro Barciela, que monitorou 270 mil usuários e mais de 1,3 milhão de interações. No dia seguinte, a tentativa de censura tramada pelo PL de Bolsonaro também contribuiu para derrubar a repercussão do lançamento da pré-candidatura à reeleição do ex-capitão. Bolsonaro foi mencionado por 10,76% dos usuários naquele dia, enquanto 87,2% se uniu em torno dos protestos de artistas no Lollapalooza, incluindo o apelo à participação dos jovens nas eleições, com evidente viés antibolsonarista. “O presidente sofreu uma derrota acachapante”, observa Barciela. “E não se pode falar em bolha, pois todo o movimento foi extrapolado, formado por atores diversos que não costumam entrar na tradicional discussão entre direita e esquerda, incluindo atores que não entram em temas políticos. Foi um movimento muito forte.”
Fonte: Datafolha, pesquisa realizada com 2.556 eleitores em 22 e 23 de março – Imagem: Ricardo Stuckert e Alan Santos/PR
De acordo com o analista, o bolsonarismo tem perdido capilaridade nas redes. As narrativas criadas pelo presidente, bem como as campanhas puxadas por seus apoiadores, não conseguem mais atingir as massas. “Dificilmente, eles extrapolam aquele universo de 30% de convertidos.” Não por acaso, as milícias digitais do ex-capitão têm reforçado a difusão de fake news, sobretudo em aplicativos de mensagens como o Telegram, onde o controle é mais frouxo. A última cascata detectada pelo TSE dizia que a Justiça Eleitoral havia cancelado o título de eleitor de todos os brasileiros com mais de 70 anos, em uma clara tentativa de jogar a população contra o tribunal, atribuindo a ele a pecha de manipulador dos resultados.
Além disso, uma publicação de novembro passado, abrigada no site de extrema-direita News Atual, voltou a correr entre os grupos bolsonaristas. As mensagens diziam que o ex-jogador de vôlei Maurício Souza teria associado Pabllo Vittar à propagação da “ideologia de gênero”, em uma clara afronta aos valores cristãos. “Maurício não se intimidou e disse que o verdadeiro crime é ideologia de gênero, linchamento virtual e pedofilia. E ainda afirmou que tudo que ele está fazendo é para proteger as crianças de conteúdo que ele considera inadequados”, diz o texto do site.
“COM A PANDEMIA E A INFLAÇÃO A CORROER AS APOSENTADORIAS, POR QUE OS IDOSOS SAIRIAM DE CASA PARA VOTAR EM BOLSONARO?”, INDAGA CHAIA
A estratégia de opor artistas, feministas e a população LGBTI+ aos valores morais tem impacto entre os eleitores religiosos. “Por um lado, é conveniente despertar o horror do segmento evangélico com essa associação entre Lula e o festival, as drogas, os LGBTs. Por outro, parece-me uma iniciativa infeliz, devido ao noticiário negativo que amplificou as críticas dos artistas ao presidente”, pondera Antônio Lavareda, doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e professor da Universidade Federal de Pernambuco.
No lançamento de sua pré-campanha, ao lado de aliados como Valdemar Costa Neto, Fernando Collor de Mello e outros próceres do baixo clero, Bolsonaro voltou a apelar para o discurso religioso. “Não é uma luta da esquerda contra a direita, é uma luta do bem contra o mal”, discursou o ex-capitão, que nunca primou pelo paralelismo semântico. Chamado constantemente de Messias pelos aduladores de plantão, o presidente ainda associou Lula a Barrabás, o assassino libertado por Pôncio Pilatos no lugar de Jesus Cristo, segundo o Novo Testamento. E fez um pedido especial aos “veteranos” eleitores: “Pais e avós têm a obrigação de mostrar para os jovens para onde o Brasil estava indo, e como vivem os jovens em países como a Venezuela”. O filho Zero Três, Eduardo Bolsonaro, estendeu a provocação às novas gerações: “Vamos fazer desse limão uma limonada? Meu desafio para você, jovem, é o seguinte: pergunta para o seu pai como que era no tempo do PT. Como que eram os escândalos de corrupção que você não viveu, mas eles viveram”.
Zero Um sentiu o golpe. Na companhia de Fernando Collor e Valdemar Costa Neto, o ex-capitão teve o lançamento da pré-candidatura ofuscado pela celeuma do Lollapalooza – Imagem: Redes sociais
Apenas 731 mil brasileiros de 16 e 17 anos possuíam título de eleitor até fevereiro de 2022, o que representava menos de 10% da população nessa faixa etária, o número mais baixo desde 1992. Com a campanha da Justiça Eleitoral e o reforço dos artistas, o número cresceu para 850 mil em três semanas. A expectativa, agora, é alcançar ao menos 900 mil inscritos até 4 de maio, prazo-limite para a inclusão de eleitores que poderão votar nas eleições de outubro, comenta o cientista político Diogo Cruvinel, analista do TSE. “Esse número corresponde a quase dois terços do total de jovens que se alistaram para votar nas Eleições Municipais de 2020”, diz.
Na avaliação da cientista política Vera Chaia, da PUC de São Paulo, o lavajatismo contribuiu para alimentar o desencanto dos jovens com o processo eleitoral, mas o principal problema continua a ser a descrença no modelo de representação política, sobretudo no caso do Legislativo, que figura entre as instituições com pior avaliação da sociedade. Professor da FGV de São Paulo, Claudio Couto acredita, porém, na perspectiva de uma reversão do cenário. “O Lollapalooza foi um evento atípico que pode gerar um efeito de bola de neve. Acabou se convertendo em um chamamento para a juventude participar mais da política. É possível haver uma redução da abstenção mais ampla, e não somente do pessoal desobrigado a votar.”
Lavareda, por sua vez, observa que Bolsonaro acertou ao estimular a participação dos idosos com mais de 70 anos nas eleições, que representam 9% do total do eleitorado, ao passo que os eleitores com menos de 18 anos correspondem a apenas 1%.
A classe artística contribui para ampliar a popularidade de Lula entre os mais jovens – Imagem: Ricardo Stuckert
É preciso, contudo, relativizar essa diferença. Em 2018, a abstenção entre os eleitores de 16 e 17 anos (38,6%) foi bem inferior àquela dos cidadãos com mais de 70 anos (61,8%). Em termos absolutos, o número de idosos nessa faixa etária que efetivamente compareceram às urnas ainda é quatro vezes superior ao dos jovens com voto facultativo. Mas as pesquisas de intenção de voto não revelam, exatamente, uma vantagem significativa para Bolsonaro entre os “veteranos”. Ao contrário, o ex-capitão está tecnicamente empatado com Lula na disputa pelos votos dos aposentados e dos eleitores com mais de 65 anos, segundo o Datafolha.
Além disso, o presidente terá dificuldade para mobilizar os idosos, supostamente mais sensíveis aos seus apelos religiosos e morais, em meio à crise sanitária, social e econômica que atinge diretamente os mais velhos, observa Chaia. “Recentemente, os medicamentos sofreram aumento de 11%. A inflação na casa dos dois dígitos corrói o poder de compra dos aposentados. Por qual razão os tais ‘veteranos’ iriam sair de casa no domingo para entregar seu voto a Bolsonaro?”, indaga a cientista política.
Só se os idosos renovarem a crença no apocalipse pintado pelos bolsonaristas caso Lula vença. A luta do “bem contra o mal” também tem dado o tom da campanha antecipada do ex-capitão em várias cidades, sobretudo no interior. Em Serrinha, no sertão da Bahia, um outdoor instalado por apoiadores do ex-capitão traz a imagem de uma foice, acompanhada das palavras “comunismo”, “corrupção”, “roubo”, “miséria” e “escravidão”. Ao lado, figura uma foto de Bolsonaro, associada aos termos “honestidade”, “liberdade”, “Deus”, “pátria” e “família”. O título da peça é ainda mais alarmista: “Só existem dois lados. A escolha é sua”. Aparentemente, a turma ainda não recebeu a notícia da queda do Muro de Berlim e da dissolução do bloco soviético. O espectro do comunismo ainda os persegue, desta vez municiado de mamadeiras em formatos exóticos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1202 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Batalha de gerações”
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