Sociedade

Violações contra a população carcerária em São Paulo se agravaram durante a pandemia

Governo paulista não adequou as medidas às recomendações internacionais e cortou verbas de saúde e higiene

Pátio da penitenciária de Ribeirão de Neves, em Minas Gerais
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Instituições prisionais de São Paulo submetem detentos a condições sub-humanas, em espaços insalubres, com privação de água, alimentação de péssima qualidade, entre outras violações. É o que conclui um relatório do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. 

O relatório foi elaborado a partir de dados coletados em 27 das 66 inspeções em instituições prisionais do estado de São Paulo durante a pandemia de Covid-19.

O relato dos pesquisadores indica que, diante das situações degradantes encontradas no sistema prisional paulista, nenhuma das funções da pena previstas pela legislação penal brasileira, voltadas para a ressocialização do indivíduo, teve condições de ser cumprida.

Além disso, demonstra que as prisões aprofundam as desigualdades sociais e estimulam o rompimento de vínculos familiares, o que acaba empurrando pessoas a integrarem organizações criminosas. 

Durante inspeção  em unidade prisional do interior de São Paulo, um detento resumiu o problema: “Se você for em um zoológico, doutor, os animais são mais bem tratados do que a gente”.

O estado abriga quase um terço da população encarcerada do País. Esse número é 140% superior à capacidade máxima das prisões paulistas.

Ao todo, são 202 mil detentos e detentas, quase sempre negros, jovens e de baixa escolaridade. A maioria foi detida por tráfico de drogas, que representa 40,21% dos crimes. Entre as mulheres, a porcentagem de prisões relacionadas a drogas é ainda mais alta, 57,7%. Sendo muitas delas gestantes, lactantes e mães de crianças e adolescentes.

Apesar da análise se firmar no estado de São Paulo, os pesquisadores alertam que as violações vivenciadas pelos presos se repetem nos demais estados da Federação.

Segundo dados atualizados do CNJ, o Brasil tem hoje um total de 916.765 pessoas privadas de liberdade em presídios e “manicômios judiciários”.

O impacto da pandemia

Desde o início da pandemia, a Organização Mundial da Saúde pediu atenção quando ao escalonamento da crise de saúde pública em ambientes prisionais, já que estes locais são mais propícios a propagação de vírus respiratórios devido a alta ocupação, baixa ventilação e as péssimas condições de higiene. 

Diante deste cenário, o Conselho Nacional de Justiça recomendou a ação de medidas preventivas à propagação da infecção nas prisões, bem como a substituição da pena restritiva de liberdade e unidades prisionais por prisão domiciliar para os grupos mais vulneráveis e para os condenados por crimes praticados sem violência, como é o caso do furto. 

Um levantamento da Defensoria Pública de São Paulo mostrou que apenas 5,5% dos pedidos de solturas em razão da recomendação do CNJ foram acolhidos. 

Buscando uma outra via, o Núcleo Especializado de Situação Carcerária da DPESP propôs que fosse concedido um induto presidencial para mitigar a situação. No entanto, o pedido foi rechaçado pelos poderes executivo e legislativo, mesmo após recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 

No âmbito do governo do estado de São Paulo também não houve medidas práticas que reduzissem o contágio pela Covid-19. Assim como, não houve avanços quanto a situação precária preexistente. 

“As medidas preventivas, insuficientes diante da gravidade da situação, restringiam ainda mais os direitos das pessoas presas, colocando-as muitas vezes em situações degradantes, como longos períodos de quarentena sem produtos mínimos de higiene, represamento de material fornecido por familiares e restrições ao direito de visitas das pessoas presas”, cita trecho do relatório. 

A proibição de visitas aos presos também teve um efeito muito negativo, causando maior distanciamento dos laços familiares, condição de vital importância para o sucesso da ressocialização. 

“Tal suspensão causou uma série de revoltas das pessoas presas, mantidas nos espaços superlotados das unidades prisionais, em que pese tivessem o direito à saída temporária – que deveria, inclusive, ser estendido durante o período de pandemia, como ocorreu em outros estados e foi requerido pelo NESC, contudo, negado em diversas instâncias”, diz o relatório. 

Ao todo foram 15.586 pessoas contaminadas até janeiro de 2022 em unidades prisionais, das quais 80 não sobreviveram. 

“Essas mortes, infelizmente, como se pode perceber, resultam de uma combinação perversa de violações de direitos no cárcere, em que as condições de insalubridade, superlotação e outras barbáries se somam à falta de assistência médica, odontológica e de serviços de outros profissionais de saúde, circunstâncias que fazem com que seja impossível ser saudável neste ambiente, muito menos prevenir adequadamente a transmissão de doenças”, concluem os pesquisadores. 

Como se a situação já não fosse previamente preocupante, o governo paulista cortou 14 milhões de reais das verbas destinadas ao atendimento de saúde nas unidades prisionais e outros 31 milhões para a compra de produtos de higiene. 

A conclusão é que nenhuma das unidades inspecionadas tem equipe mínima de saúde completa, conforme determina a lei. Quase a metade delas, 48,1%, não tem sequer médicos à disposição. 

O estudo aponta que pelo menos 1395 pessoas tinham problemas graves de saúde e estavam desassistidas. 

O levantamento também apontou uma total omissão do estado paulista quanto as condições dos espaços. 

“Em diversos presídios, foi possível constatar que as pessoas presas são obrigadas a dividir celas com até 43 pessoas, ocupando espaços que, em teoria, têm estrutura física para no máximo 12 pessoas, como se verificou no CDP de São Vicente”, cita o relatório. 

Além disso, o estado não disponibiliza cama ou colchões de forma suficiente. 

O retrato é assustador. As pessoas presas ficam, literalmente, amontoadas umas em cima das outras, uma vez que algumas celas não têm espaço para que todas fiquem deitadas, sendo obrigadas a dividir a mesma lâmina de espuma para dormir”, afirmaram os pesquisadores. 

Quantos técnicas e de segurança também foram analisadas, e concluíram que a maioria dos presídios funciona sem alvarás e laudos técnicos da Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e Vigilância Sanitária. 

Ao menos 74,1% dos estabelecimentos não tinham laudo da Defesa Civil, apenas 23,1% das unidades prisionais apresentaram laudo do Corpo de Bombeiros e somente 7,4% apresentaram laudo da Vigilância Sanitária. 

Além da insalubridade, má iluminação e pouquíssima ventilação, em 68% das instalações foi constatada a ausência de lâmpadas. Em diversas unidades prisionais não havia vaso sanitário, pia ou chuveiro. 

“Além disso, os espaços não possuem paredes, portas ou divisórias para que se tenha o mínimo de privacidade ou se evite a proliferação de insetos e ratos”, diz o documento. 

Infestação de insetos e outras pragas

“Há omissão estatal de medidas sanitárias e de controle de zoonoses, esses insetos se proliferam com enorme sucesso nos espaços prisionais. Suas picadas provocam muita coceira e alergia na pele, e, por consequência, ferimentos de difícil tratamento, agravados pela ausência ou precariedade da assistência médica e péssimas condições de habitabilidade das unidades”, cita trecho do documento.

Muitas unidades ainda sofrem com problemas de umidade e vazamentos, que prejudicam a manutenção dos alimentos e deteriorando os colchões. 

Os pesquisadores relatam que não é incomum ver os próprios detentos tentando remediar as péssimas condições da estrutura. Alguns utilizam sacolas plásticas para estancar vazamentos, enquanto outros utilizam sabão em pó, sabonete e pasta de dente como reboco, para fechar as rachaduras. 

O descaso também chega ao estômago

Em 30,79% das unidades inspecionadas não havia proteína para o preparo das refeições. Legumes, verduras e frutas se tornaram artigo de luxo nas instituições. 

Este cenário demonstra o descumprimento, por parte do estado, do previsto no Sistema Nacional de Segurança Alimentar, que determina a alimentação como direito fundamental. 

De acordo com as pessoas presas, em 85,2% das unidades inspecionadas a alimentação não era servida em quantidade suficiente. Em 92% dos presídios, não há variedade de alimentação. E ainda, 68% das unidades inspecionadas foram encontradas impurezas na alimentação. 

A situação de abandono dos detentos foi presenciada pelos familiares com a retomada das vitimas. O cenário que muitos encontraram foram parentes magros e esquálidos. 

“Quando do retorno das visitas no final de 2020, diversos foram os relatos de familiares enviados para nossos canais de atendimento apontando que as pessoas presas estavam muito mais magras (“esquálidas”), várias com aspecto doentio”, dizem os pesquisadores.  

Diante das análises, os pesquisadores concluíram que o cenário apresentado pelas unidades prisionais paulistas demonstram um desrespeito normalizado pelo estado aos mais básicos direitos das pessoas presas. Além disso, este cenário auxilia na perpetuação do encarceramento, bem como o agravamento de problemas de saúde, colocando em riso a vida de centenas de milhares de pessoas. 

“O Poder Executivo estadual não é o único responsável pela barbárie descrita neste relatório, mas também o Poder Legislativo, que não fiscaliza o Executivo, e o Poder Judiciário, que não garante direitos”, conclui o relatório. 

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