Sustentabilidade
A privatização da água tornou-se um processo acelerado e contínuo
Há uma dissociação evidente entre o comércio da água e a proteção e manutenção daqueles elementos que garantem a sua perenidade


A criação do Dia Mundial da Água, durante a conferência Rio-92, foi um alerta para proteger a sociedade humana da escassez futura. Passados 30 anos, houve grande ebulição institucional, com a proliferação de eventos comemorativos. Foram, no entanto, minguados os avanços em políticas públicas para a sustentabilidade hídrica. Como resposta do mercado global, o que acontece hoje é o acirramento dos processos de privatização.
No mundo do business as usual, tudo vira mercadoria. É o reino de Midas, onde tudo o que se toca vira ouro. A água é precificada como commodity na Bolsa de Nova York. A flutuação do preço em um sistema de maior valia, em razão da escassez, prenuncia um futuro nefasto para as populações com menor possibilidade financeira. A lógica aponta para a exclusão dos mais vulneráveis.
Segundo dados atualizados, 66% da disponibilidade hídrica é utilizada para o agronegócio. Em que pese o desperdício nos dias de hoje, para o futuro encarecer a água é encarecer a produção de alimentos. O cenário de mudanças climáticas e a instabilidade pluviométrica, além do crescimento populacional, apontam para um aumento da demanda – e, consequentemente, de escassez. Essa equação é explosiva para o mercado, pois significa uma valoração gradual nas mãos da privatização, apontando para a elevação de preços diante da diminuição da oferta.
O hidronegócio tem sido criado como um sistema parcial, oriundo de uma política econômica anacrônica que trata o meio ambiente de forma segmentada e sem percepção adequada sobre a gestão dos bens essenciais à vida. A água é um Direito Humano Fundamental, assim reconhecido pelas Nações Unidas. A ONU vai além. Os debates por saneamento, implementados por países em desenvolvimento, acabaram por consagrar o direito humano ao esgotamento sanitário.
Há duas tendências em curso, em essência, antagônicas entre si. Sob a ótica do mercado, não há abordagem adequada para a geração de bens públicos como a água. Primeiro, porque os objetivos estatutários do setor privado estabelecem em sua função prioritária a geração de lucro. De outro lado, é preciso que alguém gere bens públicos, como é o caso da água, por meio da manutenção dos ecossistemas produtores.
As empresas que dominam a privatização da água não são, contratualmente, responsáveis por zelar pelos ecossistemas naturais de produção hídrica, que ficam ao encargo dos governos. Estes devem cumprir as leis de proteção ambiental, além dos instrumentos legais que estabelecem, no território, a obrigatoriedade de se observar a função social da propriedade.
A lógica atual aponta para a exclusão dos mais vulneráveis
Ao olharmos para a realidade dos nossos sistemas naturais, percebemos que o potencial de geração de água para a América do Sul depende, em grande parte, dos rios voadores, da transposição da água da Amazônia, que fornecem chuvas para grande parte do continente. Da mesma forma, as áreas receptoras das chuvas, os solos úmidos e florestados, assim como os sistemas naturais que proporcionam a recarga dos aquíferos, dão vida às nascentes que formam rios e represas. Então, como tudo isso passaria a ser cedido graciosamente àqueles que mercantilizam a água, restando ao Estado, ou à sociedade em sua expressão mais organizada, a missão de proteger os sistemas naturais produtores?
A lógica de mercado é convenientemente parcial. Há uma dissociação evidente entre o comércio da água e a proteção e manutenção daqueles elementos que garantem a sua perenidade.
Midas é um pragmático de curtíssimo prazo. No fim da fábula, a morte aproxima-se por inanição, pois tudo o que toca vira ouro, que não é comestível.
Para gerir água é preciso democracia. Um bem público deve ser gerenciado com transparência e participação social na área ambiental, direito fundamental previsto na Constituição. Um bom exemplo de como se faz necessário tornar essa participação efetiva é o modelo de gestão para o setor de geração hidrelétrica. Se, por um lado, temos uma matriz energética menos poluente, de outro lado, a gestão do processo de geração nos revela um sistema centralizador e com absoluta prevalência dos interesses econômicos envolvidos.
A dinâmica na gestão dos reservatórios de água, que sequencialmente barram as águas dos rios para a geração de energia, revela a privatização da dinâmica e do volume dos rios pelos setores economicamente interessados. O Operador Nacional do Sistema decide a dinâmica dos rios a partir de um conselho deliberativo, que define qual será a vazão nas barragens. A vazão deveria compatibilizar os interesses dos demais usos múltiplos da água, como o abastecimento humano, a dessedentação dos animais, os ecossistemas naturais, o uso de água para agricultura, indústrias etc. Dos 17 integrantes do conselho da ONS, apenas um é consultor do mundo acadêmico, contratado pelo Ministério de Minas e Energia, além de um representante da sociedade civil, um assento ocupado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Os demais 15 são indicados pelo governo federal e pelas empresas de geração e distribuição de energia. Onde está a representação da sociedade como um todo? É incompreensível que a gestão da água em conselhos, um bem público vital, extremamente importante para a sociedade humana e a biodiversidade, ainda não conte com maioria de representação da sociedade civil, que, livre de conflitos de interesse, possibilitaria as melhores decisões pró-sociedade e pró-sustentabilidade.
Entre 21 e 26 de março, acontece no Senegal o 9° Fórum Mundial da Água, promovido pelas corporações transnacionais interessadas na privatização da água, em conjunto com governos simpatizantes. De outro lado, o Fórum Alternativo Mundial da Água – Fama 2022 Brasil/Dakar, constituiu-se como espaço de articulação popular que tem se esforçado em tornar públicos os dados e reflexões sobre a gestão da água sob a ótica de um direito humano fundamental. Essa contraposição é absolutamente necessária. A privatização tem sido uma experiência insuficiente e mal-sucedida em todo o mundo, o que provoca um grande número de reestatizações nos sistemas de saneamento e abastecimento. Não poderia ser de outra forma. O resultado é óbvio, como descreve o mito de Midas. •
*Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mercadoria ou direito?”
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