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Licitações federais de helicópteros contemplam empresa que driblou editais

A empresa Flyone também é suspeita de ter pagado propina

Licitações federais de helicópteros contemplam empresa que driblou editais
Licitações federais de helicópteros contemplam empresa que driblou editais
O coronel Silva ocupa a Secretaria de Saúde Indígena, uma das áreas que contrataram os serviços do ex-piloto Telles - Imagem: Casa Civil/PR e Redes sociais
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A finada CPI da Covid expôs no ano passado histórias estranhas com militares no tema “compras governamentais”. O então presidente da comissão, senador Omar Aziz, chegou a apontar um “lado podre” das Forças Armadas, motivo de dura reação pública do ministro da Defesa, o general da reserva Walter Braga Netto, cotado para ser vice na chapa reeleitoral de Jair Bolsonaro. Longe dos olhos da comissão, a Secretaria de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, do Ministério do Meio Ambiente, ambos comandados por fardados (no ICMBio, a farda era da PM), realizaram duas licitações que certamente não surpreenderiam Aziz, a julgar por uma espécie de dossiê que circula em Brasília.

As licitações em questão somavam inicialmente 258 milhões de reais e terminaram, em razão da disputa de menor preço entre os competidores, em 201 milhões. O objetivo dos contratantes era encontrar fornecedores de helicópteros, uma espécie de aluguel. No ICMBio, as aeronaves combateriam incêndios e queimadas no Sudeste e no Centro-Oeste e levariam cargas e servidores. Foram escolhidas duas empresas, um negócio total de 61 milhões de reais, 13 milhões a menos do que o previsto no edital. O chefe do instituto à época dos fatos era o coronel da PM paulista Fernando Lorencini. Na área indígena, os helicópteros transportariam moradores de Distritos Sanitários Especiais Indígenas e funcionários. Foram selecionadas sete firmas, por 140 milhões de ­reais, 44 milhões a menos do que o estimado no edital. A Secretaria de Saúde Indígena é comandada por um coronel do Exército, Robson Santos da Silva, desde fevereiro de 2020.

Os equipamentos da Flyone não atendiam aos requisitos do edital, ainda assim a empresa levou os contratos

O dossiê aponta o dedo para uma certa contemplada nas duas licitações, a Flyone, empresa que em 2020 teve receita de 23 milhões e, graças às concorrências em questão, irá faturar 80 milhões em um ano. Pelo que se vê no dossiê, e é possível conferir em documentos e sites de acesso público, a fornecedora entrou nas disputas com helicópteros sem alguns dos requisitos dos editais e, por esse motivo, deveria ter sido barrada. Situação igual levou à exclusão da mesma empresa de uma licitação de 23 milhões que a Secretaria de Saúde do Pará havia realizado em abril de 2021 para contratar helicópteros que transportassem pacientes de Covid entre hospitais de Belém, Marabá e Santarém. A empresa tinha o lance mais barato nesse leilão, 15 milhões. “Ao analisar a documentação da Flyone, verifica-se claramente”, anota o despacho da exclusão, que as aeronaves apresentadas “não atendem ao tipo, dedicação, especialização e requisitos exigidos no edital”. Decisão “arbitrária”, disse a companhia a CartaCapital.

Na licitação do ICMBio, a Flyone ofereceu três helicópteros, os de prefixo ­PR-MEK, PR-YTT (ambos da ­Eurocopter France) e PR-UUU (da Bell Helicopter). Os dois primeiros não tinham (agora já têm) autorização da Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, para operar táxi aéreo, ou seja, para levar passageiro (só podia o piloto). A falta de permissão constava da própria papelada enviada pela ­Flyone ao ­ICMBio, material disponível para consulta na web. Em outro documento da Anac de acesso público, chamado Especificações Operativas, sobre a frota geral da Flyone, constata-se que tanto por ocasião da licitação quanto agora, os três helicópteros não tinham autorização da agência para carregar carga interna.

Apesar desses desajustes técnicos, a empresa foi uma das vencedoras da licitação e firmou contrato de 47 milhões de reais em 23 de setembro de 2021, válido por 12 meses, e já recebeu pagamentos por serviços prestados. “Não foi constatada nenhuma inconformidade na análise da documentação e das propostas pelo pregoeiro e a equipe técnica”, afirmou o ICMBio a CartaCapital.

O PM Lorencini comandava o ICMBio – Imagem: Redes sociais

O que se passa na Secretaria Especial de Saúde Indígena talvez jogue uma luz diferente sobre os acontecimentos. Pouco antes do Carnaval, o chefe de gabinete da Secretaria, Siderval Matias dos Santos, mandou a servidores em Brasília e a dirigentes de seis Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Amapá, Alto Rio Solimões, Alto Rio Negro, Alto Rio Juruá, Kaiapó do Pará e Alto Rio Purus) um pedido de informações sobre uma denúncia a respeito de contratos com a Flyone. CartaCapital obteve essa comunicação. Santos queria “cópia do contrato firmado entre o Distrito e a empresa Flyone” e uma “manifestação do Distrito acerca do suposto recebimento de propina”. Procurado para se pronunciar sobre essa comunicação, o Ministério da Saúde não respondeu até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 10.

Em dezembro, a Secretaria de ­Saúde Indígena havia anunciado o resultado da licitação de contratação de helicópteros, colocada na praça em abril de 2021. O preço global baixou de 184 milhões para 140 milhões de reais. De 46 lotes, a ­Flyone ganhou oito, para atender os distritos sanitários de Amapá, ­Alto Rio ­Juruá, Alto Rio Solimões, ­Médio Rio ­Solimões, Tocantins, Kaiapó do Pará, Parintins e Tapajós. Total do contrato: 32 milhões de reais. Em decorrência desse leilão centralizado da Secretaria em Brasília, os distritos lá na ponta assinam individualmente acordos com a Flyone, a valer por um ano. Nessa licitação, a empresa ofereceu, no seu rol de aeronaves, uma que havia vendido três meses antes, prefixo ­PR-HDC, fabricada pela Bell Helicopter, agora de propriedade da Via Táxi Aéreo.

Embora tenha sido criada no ano 2000, a Flyone não tem tradição no mercado do transporte aéreo indígena. Sua estreia se deu em março de 2021, por meio de um contrato emergencial, sem licitação, no valor de 3,1 milhões de ­reais e validade de seis meses, com o Distrito Yanomâmi, região cobiçada por garimpeiros ilegais. Em seguida, selou negócios nos mesmos moldes com os distritos do Alto e do Médio Rio Solimões, por 1,7 milhão ao todo. Em decorrência do acordo com o Distrito do Alto Solimões, sediado na cidade de Tabatinga, no Amazonas, forneceu o helicóptero prefixo PR-YTT. É aquela aeronave que, dois meses depois, seria oferecida na licitação do ICMBio mesmo sem ter, na época, permissão para táxi aéreo. O dossiê que circula em Brasília contém fotos de 6 de abril de 2021 nas quais aparecem, numa pista em Tabatinga, a referida aeronave e servidores da área indígena. O helicóptero não estava liberado pela Anac para táxi aéreo e foi usado para tanto.

O empresário Fernando Telles, dono da Flyone, tem boas relações com integrantes da Aeronáutica

A necessidade de autorização da agência para táxi aéreo e para carga interna não é mera formalidade. Há razões de segurança envolvidas. No setor de transporte aéreo, comenta-se que a Flyone encontra boa vontade das autoridades e de militares por motivos que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal poderiam esclarecer. “Refuta-se com veemência qualquer ilação que verse sobre práticas corruptivas para a obtenção de contratos. A Flyone não pagou e não paga propina a servidores públicos”, disse a CartaCapital o dono da empresa, Fernando Carlos da Silva Telles.

O empresário, ex-piloto, tem relações comerciais com a Aeronáutica. Sua firma é contratada há tempos pelo ­Comando da Aeronáutica para suporte logístico e manutenção de helicópteros H-50. O acordo foi renovado duas vezes no governo Bolsonaro. Em 2019, por 9 milhões de reais e 12 meses. Em 2020, por 11 milhões e mesmo prazo. Há quem diga que as boas relações com a FAB permitem à Flyone participar de forma exitosa de leilões que a Força Aérea faz de componentes e peças de helicópteros. Esse material é usado depois pela empresa em suas próprias aeronaves. Há quem diga que sem as adaptações devidas. Um helicóptero militar desgasta mais e mais rapidamente do que um civil, daí que colocar estas peças em uma aeronave civil impõe uma espécie de redução da vida útil desta última.

A vida útil de certas práticas, ao que parece, tem sido, ao contrário, alongada em Brasília. De coturno e tudo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Hélices amigas”

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