Política
Órfã de Trump, Bannon e Olavo, a extrema-direita latina cria um fórum para chamar de seu
Bogotá, na Colômbia, foi a cidade escolhida como sede do primeiro ‘Encontro Regional pela Democracia e as Liberdades’


Faz mais de um ano que Donald Trump deixou a Casa Branca. Principal “ideólogo” do ex-presidente, o estrategista político Steve Bannon está sob a vigilância do FBI desde novembro. O maior elo brasileiro com o grupo, o astrólogo Olavo de Carvalho, morreu há 45 dias. Reunida sob a bandeira do bolsonarismo na expectativa da aliança com o trumpismo e da formação de uma grande rede conservadora internacional, a extrema-direita nativa ficou órfã, certo? Errado. Criado por iniciativa do ultradireitista partido espanhol Vox, o Foro de Madri pretende manter unida a tropa reacionária que, no caso específico da América do Sul, vem alternando momentos de ansiedade e depressão, com a volta da esquerda ao comando de países como Argentina, Bolívia e Chile e a forte possibilidade de – toc-toc-toc – isso acontecer novamente este ano no Brasil e na Colômbia.
Não à toa, Bogotá foi a cidade escolhida como sede do primeiro “Encontro Regional pela Democracia e as Liberdades”, que durante três dias reuniu, em um luxuoso hotel da capital colombiana, alguns dos expoentes da direita latino-americana para, nas palavras de um dos articuladores do Foro, o espanhol Jorge Frías, “organizar a resistência” contra o avanço da esquerda no continente. Anfitrião e tratado como a maior estrela do evento, o ex-presidente Álvaro Uribe alertou os participantes quanto ao perigo iminente de vitória do ex-guerrilheiro Gustavo Petro, líder em todas as pesquisas, nas eleições colombianas que acontecerão em maio: “A Colômbia é um símbolo e uma fortaleza (para a direita). Não podemos repetir aqui o que aconteceu em outros países”.
As lamentações pela vitória do esquerdista chileno Gabriel Boric, que venceu as eleições presidenciais realizadas em dezembro e toma posse nesta sexta-feira 11, estiveram presentes na quase totalidade dos discursos. Seu adversário derrotado no segundo turno, José Antonio Kast, foi uma das lideranças que participaram do encontro em Bogotá, presencialmente ou pela internet. Contribuíram para o tom de pânico que norteou as discussões a peruana Keiko Fujimori, candidata derrotada nas últimas eleições presidenciais, a líder oposicionista venezuelana Maria Corina Machado e a escritora dissidente cubana Zoe Valdés, entre outros.
Foi percebida em Bogotá a ausência de Eduardo Bolsonaro, filho Zero Três do presidente do Brasil. O deputado federal atua como embaixador informal junto à extrema-direita internacional e é oficialmente o representante do governo no Foro de Madri desde a sua fundação, em outubro de 2020. Coube ao ex-chanceler Ernesto Araújo, militante olavista hoje rompido com o clã, a missão de representar o País. Fiel ao próprio estilo, Araújo dissertou sobre “o perigo que representa a volta de Lula para a liberdade em todo o mundo” e afirmou que Jair Bolsonaro é a “nossa maior esperança para deter o autoritarismo na América do Sul”. Na ausência de representantes do governo, o ex-ministro externou aos participantes sua preocupação com a aproximação do presidente com “setores da velha política” e tentou explicar aos incrédulos ouvintes a aliança com o Centrão e como funciona o “orçamento secreto” no Congresso.
No encontro em Bogotá, lamúrias sobre o avanço da esquerda em todo o continente
Assim como Eduardo Bolsonaro, também não foram vistos em Bogotá representantes de peso do trumpismo. No entanto, o ostracismo forçado de Bannon, que aguarda em liberdade julgamento por ter se recusado a colaborar com as investigações sobre a invasão do Capitólio, que resultou em cinco mortes, 140 policiais feridos e mais de 700 prisões, não rompeu a ligação do grupo com o Brasil e a América do Sul. Segundo foi confirmado pelo próprio deputado, ele mantém contato permanente com o empresário Mike Lindell, sócio e amigo de Bannon e um dos maiores defensores da tese de que uma fraude impediu a reeleição de Trump.
No âmbito do Foro de Madri, o clã Bolsonaro continuará atuando a partir de sua ligação com Kast. A “conexão chilena” é também a chave para a interlocução com a extrema-direita europeia. Pessoa próxima ao candidato derrotado no Chile, o empresário alemão Sven von Storch, criticado por sua simpatia a grupos radicais de direita na Alemanha, mantém aceso o diálogo com Bolsonaro e Kast. O empresário é marido da deputada Beatrix von Storch, neta do ministro das Finanças de Adolf Hitler, vice-líder do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) e investigada por suas declarações xenófobas e com conotação neonazista. O casal visitou o Palácio do Planalto em julho do ano passado e foi recebido por um sorridente Jair Bolsonaro.
Fundado após a publicação de um documento, a “Carta de Madri”, firmado “em defesa da liberdade e da democracia na Iberosfera”, o Foro de Madri reúne representantes de 15 países e se apresenta como “contraponto ideológico” ao Foro de São Paulo, grupo fundado em 1990 pelos então presidentes Lula e Fidel Castro, para congregar partidos de esquerda de toda a América Latina. Em Bogotá, discutiu-se a necessidade de combater os “ismos” que, segundo os representantes da direita, assolam o continente: castrismo, chavismo, peronismo e lulismo.
Diretor do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da UFRJ, Luiz Eduardo Motta relativiza a capacidade organizacional do Foro de Madri. “Ainda é preciso saber se haverá de fato materialidade nas ações propostas pelo grupo. Não é de hoje que a direita internacional tenta conter o avanço da esquerda. A rede da extrema-direita é muito mais forte do que um mero grupo de discussão e hoje ocupa aparelhos de Estado, como, por exemplo, em países do Leste Europeu”, diz o professor, acrescentando que “o próprio Foro de São Paulo nunca foi além de uma troca de ideias”. Motta avalia, porém, que a extrema-direita latino-americana tem de ser levada a sério. “Não dá para fingir que esses grupos não existem. Durante muito tempo as novas organizações da extrema-direita na Itália e na Alemanha, assim como o partido da família Le Pen na França, não eram levados a sério, mas passaram a ser nos últimos dez anos”, diz. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “No puedo más vivir sin ti“
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.