Economia
Os fios soltos da privatização da Eletrobras
Todo dinheiro que vai entrar será consumido para comprar a Itaipu dela mesma, porque já tem o controle dessa usina


A privatização da Eletrobras está quase concluída, mas falta o governo desatar alguns nós para esse objetivo ser atingido ainda neste mandato e evitar a eventual revisão da medida, caso a oposição vença as eleições de outubro. O primeiro nó é cumprir o rigoroso calendário estabelecido pela legislação, no País e nos EUA, e o segundo é evitar que um acionista minoritário entre, na última hora, com uma ação na Comissão de Valores Mobiliários ou na Security Exchange Commission, com questionamento do valor irrisório atribuído ao negócio, com enormes prejuízos para essa categoria de sócios da empresa.
A probabilidade de a venda ocorrer no atual governo é tão elevada que o ex-presidente Lula fez apelos aos investidores interessados na compra da estatal para pensarem bem antes de fazer a aquisição, pois se trata de um crime contra o povo brasileiro. Restam, no entanto, algumas cartas a serem jogadas antes de a privatização ser consumada. Na sexta-feira 25, os trabalhadores da Eletrobras iniciaram uma greve por tempo indeterminado por pagamento da participação nos lucros de 2018 e outras reivindicações. O movimento tende, entretanto, a produzir como efeito colateral novo atraso na elaboração e publicação do balanço da estatal, indispensável ao cumprimento de todas as etapas formais necessárias à finalização do processo de privatização até maio, prazo máximo para a empresa, negociada também na Bolsa de Valores de Nova York, cumprir as exigências dos órgãos regulatórios do mercado de capitais norte-americano. Na greve anterior, em janeiro, motivada por divergências no plano de saúde da empresa, o prazo para elaboração dos demonstrativos contábeis e sua entrega à CVM, antecipado de março para fevereiro para reduzir riscos de atraso do cronograma, sofreu uma interrupção de 15 dias. “A privatização foi aprovada pelo Congresso, lamentavelmente. Perdemos essa batalha e o governo está autorizado a vender a Eletrobras. A questão agora diz respeito ao objetivo do governo de concluir a operação neste ano”, ressalta Ikaro Chaves, diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras.
Itaipu, que terá receita anual de 7 bilhões de reais a partir de 2023, foi avaliada em apenas 1,2 bilhão
Uma operação como esta, diz o sindicalista, é altamente complexa, tem várias etapas e requer atender às regras dos mercados de capitais brasileiro e estadunidense. De acordo com as normas da SEC, a Eletrobras tem 135 dias para cumprir todas as exigências utilizando os dados do balanço do último trimestre do ano passado, com publicação prevista para este mês, o que dá à empresa um prazo que se esgota em 13 de maio. Caso não consiga atender aos ritos legais até esta data, terá de usar o balanço do primeiro trimestre deste ano, que deverá ser publicado em maio. Considerando-se a necessidade de cerca de dois meses para todas as formalidades requeridas, o processo estaria concluído entre o fim de julho e início de agosto, calcula Chaves. “Isso tornaria muito difícil a privatização neste ano por causa da disputa eleitoral.”
Há ainda uma etapa a ser percorrida no TCU, que até agora só analisou a primeira delas, sobre o preço da Eletrobras fixado pelo governo. Falta o tribunal manifestar-se sobre a modelagem da privatização e se esse aval não sair até 13 de maio, não há como a privatização ocorrer, calcula o diretor da Aesel. Os obstáculos incluem dezenas de ações impetradas por entidades sindicais e outras associações à espera de análise pela Justiça.
A greve dos trabalhadores não é a única possibilidade de a privatização a todo custo dar problema e ficar para o próximo governo. A assembleia dos acionistas realizada na terça-feira 22 para aprovar a desestatização foi tumultuada por críticas à avaliação da Eletrobras, em especial no caso de Itaipu, e parece existir o risco real de algum minoritário questionar, na última hora, na CVM ou, pior ainda, na SEC, o cálculo realizado pela BR Partners e aceito pelo BNDES. Essa perspectiva ficou no ar no fim do encontro, relataram os jornais.
Risco legal. Os acionistas minoritários ficarão satisfeitos com as promessas incertas de ganhos futuros? – Imagem: iStockphoto
O motivo da indignação desse grupo de investidores, que pretendia uma revisão do valor estabelecido, é explicado por um minoritário que, sob a condição de permanecer anônimo, fez o seguinte relato: “Quando decidiram fazer a privatização, estava claro que não poderiam realizar a venda da Eletrobras nem com Itaipu, que é binacional, nem com a Eletronuclear, estratégica para o País. Precisavam retirar esses ativos e inventaram uma solução inominável, criar uma empresa nacional de energia, colocar Itaipu e Eletronuclear lá dentro e fazer a capitalização-privatização da Eletrobras”. Ocorre, diz, que Itaipu é a usina com maior capacidade de geração de energia no mundo. Em 2022, a hidrelétrica não terá mais dívidas a pagar e, a partir de 2023, gerará uma receita anual de 14 bilhões de reais, se a energia for vendida no mercado livre – metade disso é do Brasil. Então são 7 bilhões de receita. Esse é o valor de Itaipu, hoje incluído na Eletrobras.
“Ao retirar esses ativos da Eletrobras, quem tem hoje ações dessa empresa deixará de receber os dividendos correspondentes a essa receita de 7 bilhões por ano. Se Itaipu vai para outra empresa, que é do governo federal, a União precisa comprar a Itaipu da Eletrobras. Quem tem 1% da Eletrobras tem 1% de Itaipu hoje. E vai deixar de ter Itaipu. O minoritário precisa ser indenizado por isso”, alerta o minoritário.
E aí entra a mágica da conta malfeita. “Como é que você vai fazer com que a Eletrobras vá valer amanhã, sem Itaipu e sem Eletronuclear, mais do que vale hoje com essas duas empresas?”, pergunta. “O que foi feito é uma coisa insana, avaliaram Itaipu pelo capital social original da empresa atualizado monetariamente. O que deu só 1,2 bilhão de valor da Itaipu.”
Dificilmente o processo de privatização da Eletrobras será revertido pelo sucessor de Bolsonaro
A discrepância fica mais nítida quando se considera que a privatização da Cesp, muito menor e vendida em 2018 desprovida de todas as usinas que possuía, saiu por 1,7 bilhão de reais. “Para a conta da privatização fechar”, prossegue o acionista, “só ferrando o minoritário. Todo dinheiro da privatização da Eletrobras que vai entrar será consumido para comprar a Itaipu dela mesma, porque já tem o controle dessa usina. Do ponto de vista gerencial ou de estratégia, é uma das coisas mais estúpidas do mundo. O governo está dizendo para o minoritário: ‘Aceita isso agora porque, se você não me deixar privatizar, não haverá privatização nunca mais. E com a privatização, vai ganhar valor’. Mas, como você está vendo, a percepção de ganho de valor é baixa, pois as ações não estão subindo, porque vão vender a Eletrobras sem Eletronuclear e sem Itaipu.”
A suposta influência das críticas de Lula à privatização da Eletrobras é contestada por Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP. “Não considero as declarações enfáticas. Ele se diz contra, pede para os investidores pensarem bem, porque é um crime contra o povo brasileiro, mas não afirmou em nenhum momento que vai reestatizar. Até porque ele tem um histórico, no setor elétrico em particular, de ter mantido tudo o que FHC fez. Realizou uma reforma leve em 2003, grandes especialistas defendiam a reestatização do que havia sido privado, mas não foi feito”, dispara Bercovici. “Acho que ele tinha de ser muito mais taxativo. Não sei qual é o medo que eles têm de falar isso, não creio que resulte em perda de votos exigir que a energia tem de ser controlada pelo Estado para ser tratada como serviço público que efetivamente é, segundo a Constituição, portanto, não ter o preço reajustado para satisfazer acionista em Nova York. Quando querem divulgar uma posição mais forte, escalam a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, porque depois podem desmentir, se for o caso”, enfatiza o professor.
Há declaração categórica de Lula sobre o assunto, acrescente-se, divulgada em maio do ano passado, mas é no sentido de que, na hipótese de ser eleito, não vai reestatizar empresas privatizadas por Bolsonaro, o que reforça as conclusões de Bercovici. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fios soltos “
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