Editorial
Festa no mar
Recomendação de Dorival Caymmi. Mas os ricos preferiam black-tie e os pobres, fantasias do Império


O carnaval chega sempre. Já foi capaz de movimentos bem mais intensos, de chegadas impetuosas, muito do antigo elã apagou-se. E, de fato, refiro-me a outros tempos. Os Carta haviam chegado em São Paulo fazia pouco tempo, moravam no último sobrado de uma rua de terra, travessa de uma artéria ignorante do conhecimento de seu próprio futuro como avenida imponente entre palácios altivos. Não ia além, então, de um calçamento de paralelepípedos, mas era o meu caminho na direção do Clube Pinheiros, onde figurava como militante de natação infantojuvenil.
No primeiro carnaval a alcançar a família, houve um capítulo reservado à invasão da casa paterna por parte dos vizinhos em festa, de inopino entraram aos berros e vasculharam dançando a vivenda, de fio a pavio. O dono da casa ficou profundamente perplexo e somente se refez muito lentamente, coisa de vários dias. Em compensação, os alegres vizinhos acharam tudo muito natural, não perceberam o espanto do dono da casa e logo ofereceram um passeio no seu Ford 1946 pela avenida principal da cidade, a São João, para participar de um evento chamado Corso.
Pobres saudosos do Império – Imagem: Arquivo Folhapress
Tal foi o primeiro impacto da efeméride sobre os humores familiares, enquanto o Corso se perdia no horizonte. A revista O Cruzeiro, publicação fundamental para a compreensão dos ânimos carnavalescos e outros mais, fazia fartas reportagens sobre uma festa de rua que trazia à ribalta uma população basicamente negra trajada em roupas setecentistas, como se o Império estivesse ainda vivo. Páginas adiante, engalanavam a edição visões das festas dos ricos, a começar por aquela do Copacabana Palace, valorizada pela presença de um certo Jorginho Guinle, de testa fugidia, na companhia pouco convincente de moçoilas aparentemente dispostas a ceder aos seus encantos.
Jorginho quer mostrar serviço – Imagem: Acervo Estadão Conteúdo
Não passava o autor deste texto de um adolescente inclinado a um misto de ironia e melancolia. Não entendia, por exemplo, por que o cenário da Mangueira era “uma beleza”. De qual ponto de vista? Da própria favela a encarar a baía deslumbrante de frente ou de baixo para cima, a olhar o morro entregue à “festa dos trapos coloridos”, como diria Orestes Barbosa, respeitável poeta? Havia, de todo modo, um toque de ingenuidade provinciana nos desfiles das escolas, ao cabo prometido à pompa pretensa dos carros alegóricos, sem detrimento do desafio à ditadura urdido por Joãosinho Trinta.
“Quanto riso, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão”, tal era o sonho de uma realidade muito diferente daquela pretendida. É provável que boa parte dos palhaços cantados pelo samba carnavalesco não percebesse os males de um povo condenado pelo monstruoso desequilíbrio social e incapacitado à compreensão do vexame sofrido, das humilhações impostas, da presença impávida da casa-grande e da senzala.
Os ricos dançam no Copa – Imagem: Reynaldo Ceppo/Estadão Conteúdo
O carnaval como foi concebido décadas adentro confirma a desgraça. E eu prefiro secundar a grande festa no mar prevista por Dorival Caymmi, ao chamar o vento para torná-la mais vibrante. E mais, para fazer dele o primeiro a cumprimentar Iemanjá. Nesse dia de alegria autêntica, em lugar da encomendada em função da data, o momento de maior intensidade e beleza vai se dar com a passagem da rainha do frevo e do maracatu, a deslumbrante Dora, que a prosa e o verso são insuficientes para celebrar dignamente.
E agora, sim, abro a sombrinha e danço conforme manda Dorival. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Festa no mar”
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