Editorial

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Os pés da glória

Esta, no Brasil, é uma história sempre mal contada. As exceções resultam da prática correta do jornalismo. Como se dá com André Kfouri, seu pai, Juca, Trajano e poucos mais

Os pés da glória
Os pés da glória
Imagens candentes dos irmãos metralha nativos, do dedicado discípulo Joseph Blatter e do craque Platini, capaz de enterrar na meia-idade glórias dos seus pés mágicos – Imagem: Cecília Acioli/Folhapress, Themba Hadebe/AFP, Zakaria Adbelkafi/AFP e Hipólito Pereira/Estadão Conteúdo
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Este enredo poderia ser acompanhado pela câmera de Stanley Kubrick. Mas no seu Paths of Glory, no Brasil intitulado Glória Feita de Sangue, de 65 anos atrás, não se cogita de eventos futebolísticos. A palavra path significa sendas, caminhos.

O Brasil está a discutir com extraordinário empenho um torneio de futebol já obsoleto. Ou seja, o que os nossos locutores costumam chamar de título mundial. Com absoluta tranquilidade dá para dizer que o título em questão já deixou de ser aquele. Havia sentido na disputa quando os finalistas realmente representavam o melhor bolípodo nos seus respectivos países e talvez continentes. Isto, francamente, é coisa do passado. Hoje é até problemático entender por que a disputa tem de forçar viagens intermináveis. Por exemplo: até o outro lado do mundo?

André Kfouri, filho do maior jornalista do Brasil na matéria e outras mais, o ­Juca, de quem me lembro desde as eras mais priscas, acaba de dar uma aula na televisão, com a providencial interferência do meu vídeo. Conheço André desde o tempo em que era adolescente. Recordo, na companhia de Sócrates, um dos maiores craques brasileiros e meu amigo também, em uma festa celebrada por razões que, confesso, esqueci. Está gravada, de todo modo, a expressão firme e honesta de André.

Hoje o encaro no momento em que surge como um professor do melhor jornalismo. Ele comenta o grande assunto do momento, o jogo estranhamente japonês entre o Chelsea londrino e o Palmeiras do Parque Antártica. Praticamente, diz o seguinte: a vitória dos ingleses eram favas contadas, são melhores de todos os pontos de vista e as razões já foram expostas de mil maneiras. Provavelmente, no embate direto, o Chelsea ganharia sempre, pela mais simples das razões: é melhor. Inútil, e mesmo patético, insistir do lado oposto. Às vésperas do jogo, o tom geral das previsões dizia o contrário. O Palmeiras do Abel Ferreira tinha condições de arrumar surpresas.

Um dos jornalistas visitantes, na minha sala de estar, chega a vaticinar um resultado de 5 a zero. A favor do Palmeiras deste Abel a não ser confundido definitivamente com qualquer Caim. Depois do jogo, o tom realmente mudou e aumentou o número de comentaristas dispostos a admitir que a vitória foi plenamente justificada, embora sempre tenha um ou outro de péssimo humor. O próprio papa nos recomenda bom humor como fator indispensável a uma vida bem-sucedida, senão totalmente feliz.

Destemido professor do melhor jornalismo – Imagem: Edilson Dantas/Agência O Globo

Deste bom humor participa André Kfouri, incapaz de palavras agressivas, menos ainda raivosas. Trata-se, simplesmente, de uma demonstração de como um jornalista autêntico comenta um fato do esporte com independência soberana e paz interior. A ele, certamente, Kubrick entregaria o papel de Kirk Douglas, a enfrentar a prepotência dos generais.

Outro jornalista esportivo avança nesta circunstância, José Trajano, diante de quem sustentei tranquilamente que a seleção italiana de Paolo Rossi era melhor do que aquela do Telê Santana, derrotada por três implacáveis gols do Bola de Ouro da vez, o próprio Paolo, capaz de façanhas inesquecíveis. Falei e disse, em momento algum Trajano me interrompeu e, se bem lembro, de muitos pontos de vista, concordou comigo.

Não costuma aparecer nos comentários dos cronistas pátrios qualquer referência, por mais tênue, à quadrilha nativa que comandou por longos anos o futebol mundial diretamente dos gabinetes da ­Fifa. Refiro-me a João Havelange, ­Ricardo Teixeira, José Maria Marin. Há momentos épicos na trajetória desses senhores e pergunto aos meus botões e chuteiras onde e quando atingiram a perfeição.

Ouço o ruído ciciante do contato entre os cravos, e não são flores, com o relvado do jogo. A tarefa é das mais difíceis, mas não posso esquecer o juiz Byron ­Moreno convocado, em 2002, para dirigir um jogo da seleção italiana em que conseguiu expulsar a vítima de uma penalidade máxima e, ainda assim, insatisfeito, expulsou o alvo da sua punição ao alegar simulação. Também pudera, o referee equatoriano era traficante de drogas de longo curso e tudo faria para a felicidade dos nossos irmãos metralha. Diga-se que a corrupção não foi apenas um fenômeno brasileiro. Quando Michel Platini, celebrado como craque sublime, comandou o futebol europeu, ele não deixou por menos e portou-se à altura das mais apuradas tradições nacionais.

No caso, seria inútil qualquer tentativa de comparar a ladroagem europeia com a brasileira, no fundo todos candidatos às penas do Inferno de Dante. Muito eficazes os nossos metralhas: criaram um aluno impecável chamado Joseph Blatter, dotado da mais suave expressão helvética na hora de praticar o mal com a certeza do dever cumprido. A corrupção é um vegetal que em se plantando dá. E no assunto somos mestres. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os pés da glória “

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