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‘O espaço tornou-se inacessível para a vida porque foi destinado para a renda’

Raquel Rolnik demonstra como a política urbana de São Paulo excluiu, de forma sistemática, a maioria da população

A urbanista é uma voz central na defesa do direito à moradia - Imagem: Tomaz Vello
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Nascida entre a Barra Funda e os Campos Elísios, ­Raquel Rolnik tem sua existência absolutamente colada à cidade de São Paulo. A nova edição de São Paulo: O Planejamento da Desigualdade (Editora Fósforo, 120 págs., 59,90 reais) é, não à toa, dedicada às filhas, “que aprenderam desde o berço a compartilhar a mãe com a cidade”.

Uma das mais importantes urbanistas brasileiras, relatora especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU por duas vezes e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU), Raquel tem em São Paulo sua residência, seu objeto de estudo e sua causa. No livro, uma reedição alentada da obra publicada há 20 anos, Raquel tateia o futuro da cidade erguida sobre vales, colinas e várzeas e tornada concreto, tijolos e fios.

A autora define a Região Metropolitana, com seus 20 milhões de habitantes, como “uma das cidades-mundo do planeta”. Cidade-mundo que, na semana do aniversário de 468 anos, divulgou o senso que deu concretude àquilo que os olhos já viam: na pandemia, o número de pessoas vivendo nas ruas cresceu 31% (ver texto à pág. 55).

A nova e alentada edição do livro publicado há 20 anos traz um prefácio do rapper Emicida

Umas das novidades da edição é o prefácio de Emicida. No texto, o rapper relata a chegada de sua família ao Jardim Brasil Novo, bairro incrustado entre a Serra da Cantareira, na Zona Norte, e a Rodovia Fernão Dias. “Havia na região apenas seis casas. Todas elas de famílias pobres, vindas de alguma outra margem distante da mancha urbana produzida pela densidade populacional paulistana”, descreve ele, antes de contar que, pouco depois, seriam expulsos dali pelo Poder Público.

É que a empresa que vendera o terreno não era dona dele. Entendida a maracutaia de que foram vítimas e se vendo na condição de sem-teto, essas mesmas famílias decidiram para lá voltar e, com troncos de árvores cortados da mata da região, começar a erguer as colunas de suas casas.

Se o prefácio de Emicida empresta novos sentidos à obra é porque em sua história de vida está contida a tese central do livro: a cidade que temos é fruto de uma política urbana que sempre teve como eixo decisório os comportamentos e interesses da classe média, e que, portanto, sempre excluiu do processo a maioria da população.

Nesta entrevista, concedida por Zoom, durante suas férias, numa praia da Bahia, Raquel fala sobre as decisões que nos conduziram a este presente trágico e diz que a cidade vive hoje aquela que talvez seja a maior crise de moradia de sua história.

CartaCapital: O que a história urbanística da cidade tem a nos ensinar?

Raquel Rolnik: Meu livro mostra que o modelo que temos hoje foi fruto de um processo de tomada de decisão, muito claro e consciente, em torno de políticas urbanas. Trata-se de entender por que essas opções foram tomadas e, ao mesmo tempo, mostrar que é possível escolher outros caminhos. Dou alguns exemplos de como esses modelos foram sendo implantados ao longo da história e nos levaram a esta situação insustentável.

Como as regras foram criadas para o modelo da classe média, os moradores dos territórios populares vivem de forma irregular. No trânsito, proliferaram os entregadores que servem os privilegiados – Imagem: iStockphoto e João Marcos Rosa/Nitro

CC: A cidade está tomada pela miséria. Famílias que, claramente, tinham casas estão erguendo barracas em vias públicas. A pandemia deu uma nova cara à crise de moradia da cidade?

RR: A pandemia exacerbou um processo que estava em curso e que decorre de dois fenômenos: a crise econômica, com desemprego e perda de renda, e zero política habitacional. Não temos política habitacional nem no município, nem no Estado, nem no âmbito federal. Juntamente com isso, tivemos, a partir de 2015/2016, uma explosão nos preços de imóveis e terrenos, decorrente de movimentos do circuito financeiro. Houve um capital excedente global que, com a diminuição das oportunidades de remuneração, foi para o tijolo, levando os preços dos imóveis e do aluguel a subirem sem parar. Esse conjunto de fatores fez com que a gente mergulhasse em uma das piores crises de moradia da história de São Paulo.

CC: Quais foram as outras grandes crises?

RR: Eu diria que esta crise é muito parecida com a vivida na década de 1920, que gerou o modelo de autoconstrução da periferia. Outro momento de crise deu-se nos anos 1980 e gerou uma favelização que, até então, não era comum em São Paulo. Agora, estamos vendo a explosão das novas ocupações, além de as pessoas indo para a rua. Esse novo contingente de famílias que foram para a rua tem um perfil muito semelhante àquele das ocupações – são pessoas que foram removidas ou despejadas por falta de pagamento de aluguel. O espaço tornou-se cada vez mais inacessível para a vida, porque ele foi sendo cada vez mais destinado para a renda.

CC: Ao mesmo tempo que houve, na pandemia, a chegada de muitas famílias à rua, parece ter havido um certo fluxo das classes média e média alta para os condomínios do interior.

RR: É esta a metáfora do filme Não Olhe para Cima. Diante de uma situação claramente problemática, e com perigos que se avizinham, a reação é: “Temos uma nave que vai nos salvar”. Mas a ideia de proteção total é uma utopia. Essa é uma das dimensões. A outra é que, de fato, houve gente que migrou para o interior, mas, se você olhar em termos estatísticos e proporcionais, isso foi mínimo. Esse movimento nos parece maior porque a nossa política urbana sempre foi classe-média-cêntrico. Isso ficou muito evidente durante a pandemia, quando o governo decretou o lockdown. Esse modelo de comportamento urbano – Fique em casa, faça home office, Peça comida pelo delivery – é completamente classe-média-cêntrico. O porcentual de pessoas que poderiam, efetivamente, fazer um trabalho de casa e se abastecer por meio do delivery, é muito pequeno. E a gente viu, por meio do trabalho do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da FAU), que as grandes concentrações de contagiados e mortos por Covid-19 se deram nos lugares com grandes concentrações das pessoas que tinham sido obrigadas a sair para trabalhar nos momentos de quarentena.

“O espaço tornou-se inacessível para a vida porque ele foi destinado para a renda”

CC: A senhora descreve no livro a cidade tomada por gente transportando coisas compradas pela internet ou encomendadas pelo delivery.

RR: A cidade sempre se orientou a partir desse paradigma, de tomar o comportamento da classe média como sendo o geral, e na pandemia não foi diferente. Historicamente, o planejamento urbanístico e as regras de uso e ocupação de solo tomam o modo de viver e o modo de organizar a vida de um pedaço da cidade como se fosse o todo. Isso implica duas coisas: ignorar a maioria e decretar o comportamento das maiorias como um comportamento irregular ou ilegal. Como o modelo de moradia da classe média é um modelo inscrito na legislação, a maior parte das pessoas que moram nas periferias, nas favelas e nas ocupações – que são o que eu chamo, ao longo do livro, de territórios populares – tem modos de morar considerados ilegais, irregulares e desviantes.

CC: Em meio a tanta violência – ou a tantas violências –, a senhora faz referência aos movimentos de apropriação do espaço público.

RR: A cidade teve um momento muito forte de condomínios e shopping centers. Isso é algo ainda hegemônico, mas uma parte da classe média rompeu com essa ideia e passou a questionar esse modelo. Na última década, o espaço público voltou a ser ocupado. Mas também é importante dizer que, do ponto de vista da periferia, a rua sempre foi ocupada.

CC: É possível vislumbrar ou sonhar com uma cidade menos desigual e mais habitável?

RR: Vivemos hoje o que eu chamo de um combo de crises – sanitária, ambiental, política, social, hídrica… Por quanto tempo mais a gente vai poder ver enchentes e o sistema viário entrando em colapso porque está montado em cima de rios? Como lidaremos com esta grande crise da moradia? Mas eu acredito que todo momento de crise profunda é também um momento para se repensarem caminhos. Acho que este modelo está em seus estertores. Por que nos últimos estertores? Porque a crise sanitária – que, inclusive, tem tudo a ver com a crise climática –, aliada à crise política da gestão das cidades, revelou que este modelo é insustentável. Ele não nos deixa saídas. E por isso tenho alguma esperança de que outro pacto sociopolítico e territorial seja construído. •


O CENSO DA TRAGÉDIA

Ao longo da pandemia, aumentou em 230% o número de barracas erguidas em vias públicas

O perfil da população de rua mudou nos últimos anos – Imagem: Alexandre Schneider/Getty Images/AFP

Atualmente, há 31.884 pessoas nas ruas da cidade. Em 2019, eram 24.344 pessoas: o aumento numérico é de 7.540 pessoas, o equivalente a toda população em situação de rua no Rio de Janeiro.”

Essa frase abre o texto disponibilizado na sala de imprensa da prefeitura de São Paulo a respeito do Censo da população de rua divulgado no domingo 23. De acordo com o estudo, desde que a pandemia começou, essa população teve um crescimento de 31%. Se comparado a 2015, esse contingente dobrou.

O levantamento, feito nos últimos dois meses de 2021, demonstrou ainda aquilo que se evidencia nos canteiros das principais avenidas de São Paulo: os que chegaram à rua recentemente vieram com suas famílias. De acordo com o Censo, 28% dos moradores de rua vivem com algum familiar e houve um aumento de 230% no número de barracas de camping e barracos de madeira erguidos em vias públicas.

A presença de barracas é sintomática do novo perfil: gente que tinha casa e que, sem condições de manter o pagamento do aluguel, tenta, a céu aberto, manter o mínimo de privacidade e guardar, sob as lonas, pequenos detalhes que remetem a um lar, como enfeites e até mesmo eletrodomésticos.

Quando questionados sobre o que os faria deixar a rua, 45,7% dos entrevistados pelo censo disseram que seria encontrar um emprego fixo. Apenas 6,7% afirmaram que seria superar a dependência de álcool e outras drogas.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1193 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os donos do espaço”

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