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Bolsonaro é a figura ideal para a destruição do que sobrou no país

O Varietes of Democracy (V-dem), instituto ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, elabora relatórios anuais sobre a qualidade da democracia no mundo. Em seu último estudo, alertou para a intensa deterioração do regime democrático no Brasil após a chegada de Bolsonaro ao poder. Tendo […]

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) (Foto: Marcos Corrêa/PR)
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O Varietes of Democracy (V-dem), instituto ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia, elabora relatórios anuais sobre a qualidade da democracia no mundo. Em seu último estudo, alertou para a intensa deterioração do regime democrático no Brasil após a chegada de Bolsonaro ao poder. Tendo como referência o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, a democracia brasileira perdeu pontos o suficiente para deixar de ser considerada uma democracia liberal, passando a se enquadrar em um regime apenas de natureza eleitoral.

Embora o Brasil não seja considerado uma ditadura, sua guinada à autocracia é considerada pelo instituto como uma das mais rápidas nos últimos anos. A hostilidade de Bolsonaro aos críticos de seu governo foi um dos parâmetros para suas conclusões, que levaram em conta, dentre outras coisas, o boicote promovido contra o jornal Folha de S. Paulo, a perseguição a servidores públicos que contrariaram o governo, a sugestão de que o jornalista Glenn Greenwald poderia ser preso em função da série Vaza Jato e o já conhecido pendor por ditadores como Pinochet e Stroessner, alvos de incontidos elogios por parte do presidente.

O fato é que Bolsonaro não leva a democracia a sério – e é exatamente por isso que ele é a pessoa certa para ocupar a Presidência da República na atual quadra histórica, onde direitos e liberdades democráticas deixaram de ser toleradas pela acumulação capitalista.

Há um estágio crônico da democracia liberal em que o reconhecimento de direitos e o incremento da participação popular nos processos de decisão se tornam um inconveniente para a sua principal finalidade, qual seja, a de garantir a liberdade e a igualdade que tornam possíveis a circulação de mercadorias e a apropriação privada da riqueza coletivamente produzida. Medidas como golpes parlamentares, a emenda constitucional do teto de gastos (que só da saúde, por exemplo, tirará mais de 700 bilhões de reais durante sua vigência) e a prisão de lideranças que não dançam segundo essa música mostram como mecanismos jurídicos têm um papel fundamental nesse esquema. É aí que a prática do lawfare, ou o uso da lei para promover perseguições políticas, ganha relevância.

Em artigo sobre o livro “Lawfare: uma introdução”, de Cristiano Zanin, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim, o professor Alysson Mascaro traça a linha que separa as abordagens materialista e idealista não apenas no que diz respeito ao fenômeno do lawfare em si, mas aos atalhos autoritários à ordem democrática e constitucional. Enquanto a utopia liberal, apoltronada em seus idealismos, os enxerga como um soluço, acreditando haver uma deturpação do direito e da democracia, o olhar materialista os vê como inerentes aos padrões e formas instituídas pela sociabilidade capitalista; a graxa que torna possível o movimento das engrenagens que fazem com que pouco mais de dois mil bilionários tenham mais riqueza que 4,6 bilhões de pessoas, ou quase 60% da população mundial, segundo o último relatório da Oxfam.

Deve-se encarar essa obscena concentração como uma espécie de meta, sendo as leis e o direito o instrumental que serve para assegurar que seja atingida, embora no papel suas finalidades sejam outras. Quando a concretização destas finalidades, por contingências conjunturais, se sobrepõe politicamente aos objetivos não declarados do aparato jurídico, entra em cena o porrete, metafórico ou literal, para lembrar a quem realmente serve.

Foto: Marcos Corrêa/PR

lawfare, portanto, não pode ser considerado produto apenas de uma aplicação míope do direito; tampouco de governantes, empresários, juristas e jornalistas mal intencionados, aponta Mascaro, sendo, sim, a margem extrema, porém sempre possível, “do rio de uma sociedade de exploração, opressão, concorrência e disputa”. Tropeços antidemocráticos não são frutos de psicopatias, mas, como demonstra no livro “Estado e Forma Política”, de institutos sociais e políticos que nascem da produção capitalista, da exploração do trabalho assalariado e da tendente conversão de todas as coisas e pessoas em mercadoria.

O ponto é que não existe capitalismo sem uma estrutura jurídica que garanta que mercadorias rodem tranquilamente por aí. Por isso é preciso ter em mente o fato das relações mercantis gerarem uma forma política que se apresenta separada das forças produtivas, assegurando a reprodução capitalista na condição de garantidora. Esta forma, representada pelo Estado contemporâneo, não surge do nada. Acreditar que surgiu antes do modo de produção capitalista é cair na armadilha que enxerga os postulados do liberalismo como leis universais e eternas, brotadas do chão e nascidas de reações químicas.

No último dia 15 de janeiro completaram-se 101 anos do assassinato da teórica e militante marxista Rosa Luxemburgo. Em suas conhecidas discussões com Eduard Bernstein retratadas em “Reforma ou Revolução?”, Rosa conclui que se o Estado se coloca como caudatário dos interesses de desenvolvimento social, isso só é possível na medida em que estes interesses coincidem, de maneira geral, com os da classe dominante. O exemplo que traz é o da legislação operária feita tanto no interesse da classe capitalista como da sociedade, uma harmonia que dura até o ponto em que passa a bater de frente com os níveis de acumulação tidos como ideais pela burguesia.

Se Vargas instituiu a CLT com a finalidade de, como fez questão de deixar claro ao próprio empresariado, amortecer as tensões da relação entre capital e trabalho e assim evitar uma revolução, hoje esta mesma CLT se tornou uma barreira para margens de lucros possíveis somente via a pilhagem de fundos públicos e a uberização das condições de trabalho. É nessas circunstâncias que foram aprovadas as reformas trabalhista e da Previdência. É onde também se anuncia uma reforma tributária que tende a seguir os mesmos rumos de isenção dos mais ricos e privilégios a bancos, cujos lucros vêm batendo sucessivos recordes mesmo em tempos de crise.

No relato “Por que resisti à prisão”, republicado recentemente no livro “Chamamento ao povo brasileiro” (editora Ubu), Carlos Marighella, ao expor os motivos pelos quais enfrentou as forças policiais que o abordaram meio a uma sessão de cinema em 9 de maio de 1964, identifica na deposição de João Goulart o pecado original de uma democracia na qual, por ter sido constituída pelas classes dirigentes, os poucos direitos conquistados pela maioria não são frutos de benevolências, mas resultados de muita luta. Essa interpretação é o que faz com que seu diagnóstico do golpe seja preciso: “quando o poder econômico se viu ameaçado pelo descontentamento das massas (…) a democracia burguesa, vigente até então, tornou-se coisa do passado. O sonho de uma noite de verão”.

A apreciação histórica do conteúdo da democracia brasileira o levou à mesma conclusão que Marx tomou em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”: não importa se a forma de governo é monárquica, republicana, parlamentarista, democrática ou despótica, desde que seja a mais adequada ao predomínio inalterado do poder das classes dominantes e à defesa suprema dos seus interesses contra os interesses das massas. “Quer sobrevivam ou não as liberdades”, finaliza, categórico, o inimigo número um da ditadura militar brasileira.

Não causa surpresa que o maior nome da resistência armada ao regime dos generais tenha sido deputado na Assembleia Constituinte de 1946. Menos perplexidade ainda causa o fato de, antes de decidir pegar em armas, ter exaurido os meios de lutar dentro da institucionalidade. Foi o desânimo com a democracia burguesa por não cumprir minimamente com suas promessas, encarando as reformas de base (que nada de revolucionária tinham) como uma transgressão comunista, que fez com que Marighella, assim como Rosa Luxemburgo, tivesse ainda mais certezas de que não se deve alimentar fantasias sobre os limites emancipatórios da ordem vigente.

Na clássica cena de “Matrix Reloaded” em que Neo se encontra com o Arquiteto, este lhe explica que, antes de ser um tipo de salvador, sua condição se resume à de uma equação desequilibrada e não assimilada pelo sistema; uma anomalia a qual, embora fora dos padrões, não é inesperada, estando, assim como suas antecessoras, sob o controle da própria Matrix.

Bolsonaro nunca foi um outsider apto a reiniciar o sistema. É, pelo contrário, um fenômeno previsível na história do capitalismo, representado na figura autoritária que, sob a frágil bênção das formalidades da democracia liberal, ocupa espaços de decisão importantes na burocracia estatal e contribui para que seja dada segurança ao prosseguimento de seus fins não declarados e muito menos inscritos na Constituição: pisar no acelerador da exploração, “quer sobrevivam ou não as liberdades”.

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