Economia

assine e leia

Nova commodity?

A relação entre o controle de dados processados e brutos estabelece outro estágio do subdesenvolvimento

Nova commodity?
Nova commodity?
Os data centers expressam a nova divisão internacional do trabalho – Imagem: iStockphoto
Apoie Siga-nos no

A era digital renovou o conceito da divisão internacional do trabalho. No ambiente transnacional, a globalização neoliberal separou alguns países extratores e processadores de dados dos demais que simplesmente se submetem à condição de ofertantes de dados brutos. Essa relação de trocas desiguais entre dados brutos e processados restabeleceu outro estágio do subdesenvolvimento capitalista. Com a dependência externa imposta pela dinâmica desregulada das grandes corporações estrangeiras de tecnologia, as big techs, o moderno modelo de negócios da datificação tornou-se a nova fundamentação da riqueza.

Nos Estados Unidos, por exemplo, sete entre as dez maiores empresas são big techs: Alphabet (Google), Amazon, ­Apple, Meta, Microsoft, nVIDIA e ­Tesla. No passado da era industrial, as dez maiores empresas estadunidenses do ano de 1980 eram Esso, Ford, General Motors,­ ­Atlantic, Texaco, Philco, Goodyear,­ ­Cargill, IBM e General Electric.

Naquela época, o atraso de um país era notado pela inexistência de empresas industriais, sendo a relação de troca desigual localizada na pauta de exportação assentada em commodities primárias, com ênfase em recursos naturais e baixo custo de mão de obra. Na era digital, os dados brutos assumiram a forma de commodity. Isso porque, neste primeiro terço do século XXI, a datificação tem sido o meio pelo qual a governança de populações e território que predomina no mundo tem sido objeto de disputa na esfera pública cada vez mais tomada por interesses privados dominantes. Diante da revolução informacional generalizadora da maior inundação de dados no mundo, própria da era digital, prevalece o paradoxo da pós-verdade demarcada pela desinformação, falsidades e mentiras.

Sobre o processo atual da desinformação e difusão do discurso de ódio e debates superficiais nas redes sociais e na mídia, o filósofo alemão Jürgen Habermas destacou a novidade da dessintonia dos conceitos de razão comunicativa e democracia deliberativa (Teoria da Ação Comunicativa, 1981). Pela cultura de massa da era digital, a autenticidade do tempo e espaço na disputa das ideias que fundamentou a esfera pública nas tradicionais sociedades urbanas e industriais tem sido corroída pela nova razão comunicativa sedimentada na superação da razão iluminista da lógica instrumental.

Caso queira escapar dessa sina, o Brasil precisa investir na sua soberania digital

Tudo isso tem contribuído para o crescente comprometimento da legitimidade da democracia liberal em transformar a realidade das maiorias sociais e eleitorais. O que se assiste é o novo contexto de comunicação das massas vulgarizadas pela oposição à avaliação racional dos conteúdos expostos pela centralidade da internet, sobretudo quando predomina o iletramento digital.

Até então, a visão iluminista asfaltava a internacionalização da organização e uso de dados oficiais por meio dos institutos nacionais de estatística. Desde 1853, com a realização do primeiro congresso de estatística na Bélgica, tornou-se possível o movimento de harmonização conceitual e padronização estatística dos dados a partir da perspectiva do Norte Global. Dessa forma, as ideias e as opiniões passaram a estar racionalmente assentadas em evidências da realidade produzidas por institutos nacionais de estatísticas a servir de orientação de decisões e políticas públicas. Pela atualidade da marcha da transformação digital, a datificação tornou-se a plataforma das decisões do dia a dia sobre os negócios e a própria vida humana.

Conduzida pela política de privacidade das gigantescas corporações transnacionais detentoras de descomunal capacidade tecnológica, a absorção e a extração dos dados pessoais e institucionais têm acontecido naturalmente. O resultado tem sido a reprodução ampliada das trocas desiguais entre países e intrapopulação. Pela ausência da consciência nacional sobre o novo estágio do subdesenvolvimento, o receituário neoliberal desregulatório da internet opera em países sem infraestrutura nacional de dados e ampla massificação do iletramento digital. A compreensão do papel dos dados enquanto uma nova mercadoria (­commodity) transacionável requer retomar o campo da economia e da soberania nacional.

Com a hiperindustrialização dos serviços, o capitalismo de vigilância opera por meio do capital que avança pelo trabalho tanto pelo sub-remunerado como pelo não pago (gratuito) em servidores da nuvem (Yanis Varoufakis em Tecnoglobalismo: O Sucessor Silencioso do Capitalismo, 2024). A computação em nuvem que provém do armazenamento e memorização de uma gigantesca e pluralidade de dados brutos decorre da extração gratuita permitida pelo acesso universalizado da internet.

Google, Amazon, Meta e nVIDIA: as big techs dominam a economia – Imagem: iStockphoto

Seu processamento com aprendizado de máquinas consolida o modelo de negócio gerador de lucros extraordinários com a datificação. Atualmente, o fluxo dos dados produzidos no mundo supera o aporte no Produto Interno Bruto de responsabilidade da corrente dos bens convencionais.

Sem salvaguardas digitais, o livre fluxo dos dados conformou o mercado globalizado altamente rentável a converter o próprio dado em commodity. O Brasil assume a condição de quarto maior mercado de internet e de acesso móvel no mundo, em grande medida operada pelas big techs estrangeiras e fortemente dependente das importações. Pela monetização das redes sociais, um espaço de trabalho não pago e subvalorizado passou a ocupar-se de uma massa crescente de trabalhadores, muitos deles sobrantes e sem destino no próprio capitalismo. Em razão disso, a tradicional relação capital e trabalho da era industrial tem cedido lugar à relação débito e crédito, em que predominam trabalhos gerais e desvalorizados com jornadas flexíveis e incertas.

Sem informações oficiais precisas, pouco se sabe até hoje a respeito da natureza e dimensão do mercado digital, onde as grandes corporações de big tech operam livres e desreguladamente. A ausência da transparência parece esconder as informações sobre produção, vendas, ocupações, contribuição na tributação e dependência tecnológica, entre outras variáveis.

O processo de extração tecnológica dos dados brutos conduzido por corporações transnacionais de tecnologia impõe outra natureza no valor dos negócios. Os registros pessoais e institucionais tradicionalmente armazenados assumiram a forma de negócio induzido como transações financeiras, cada vez mais adequado como rentismo dos dados.

O contido conhecimento a respeito do conceito da economia digital até agora permite que o subdesenvolvimento se reproduza pelo ecossistema de dados a arruinar os laços sociais cada vez mais devastado por relações de trocas nos países meramente exportadores de dados brutos. Essa nova fonte de receita operada por big techs privadas compõe o faturamento superior ao PIB em vários países a seguir praticamente não regulada e tributada.

O resultado tem sido a potencialização de duas modificações históricas de enormes repercussões mundiais. A primeira resulta do processo de monopolização de conteúdos e informações extraí­das da internet que, guardada a devida proporção, poderiam encapsular o mundo da era digital em uma nova Idade Média. Como se sabe, a antiga Idade Média durante os séculos V a XV, somente intermediada pela Idade de Ouro Islâmica nos séculos VII a XIII, concedeu extraordinário poder à Igreja Católica. O seu papel de monopólio na preservação e disseminação do conhecimento em mosteiros se reproduziu no controle da educação afirmativa da representação da vontade divina, justificando a própria divisão do antigo sistema social feudal.

O fluxo dos dados produzidos no mundo supera o aporte no PIB de responsabilidade da corrente dos bens convencionais

A segunda possibilidade de modificação histórica de repercussão mundial decorre do poder da grande e monopolista empresa privada a reverter o marco das relações internacionais. Tanto em 1648, com o Tratado de Westfália, que emergiu do fim da Guerra dos Trinta Anos, quanto em 1944, com o Acordo de Ialta ao fim da Segunda Guerra Mundial, o governo de populações e a partilha dos territórios obedeciam a certa ordem protagonizadora da hierarquia mundial a partir do Norte Global.

Até o século XVIII, o sistema colonial europeu favoreceu os impérios do continente, cuja sequência cristalizou a hegemonia inglesa expressa inquestionavelmente pelo poderio militar e dominância do padrão-ouro e libra e da revolução tecnológica. No século XX, contudo, a Inglaterra decaiu com as duas grandes guerras mundiais, sendo sucedida pela hegemonia capitalista dos Estados Unidos, assegurada pelo poder militar aliado aos avanços tecnológicos e ao padrão monetário do dólar.

Na atualidade do deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente, emerge o questionamento a respeito das possibilidades de os países do Sul Global conceberem outro projeto de modernidade que não seja a mera reprodução dos interesses como no passado dos países do Norte Global. No caso brasileiro, conforme ressaltou Antonio Candido (Literatura e Subdesenvolvimento, 1970), a consciência do atraso tem sido uma marca desde o início do processo de formação nacional.

A Revolução de 1930 fincou a soberania econômica na estratégia de substituição das importações de manufaturas. Quase cem anos depois, a soberania de dados está em disputa em meio às possibilidades de o País fundar a sua própria infraestrutura de dados por meio de sua nuvem soberana a integrar os bancos de dados já existentes e, sobretudo, os novos da própria era digital.

A montagem do Sistema Nacional de Geociências, Estatísticas e Dados concederia horizonte à estratégia do governo brasileiro de reafirmar a soberania dos dados. Romperia, dessa forma, com a condição de produtor de commodities de dados, enfrentando a outra forma de subdesenvolvimento. •


*Economista, presidente do IBGE.

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nova commodity?’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo